Socorro-me do debate travado na primeira parte do Eixo do Mal (sem link) para abordar este tema. Daniel de Oliveira, um dos habituais intervenientes e militante do Bloco de Esquerda, mostrou-se intransigente para com a personagem que nos visitava e com a sua ida à Assembleia da República, a casa da democracia. O próprio coordenador do programa, brincando, chegou mesmo a referir que Daniel de Oliveira poderia já não estar para a semana naquele programa, dado que os dinheiros de Angola, que parece que já entraram no semanário Sol, poderiam facilmente intervir naquele canal de televisão e correr com o crítico do Presidente angolano.
Clara Ferreira Alves, outra das intervenientes, contra argumentou, inserindo o que se passa em Angola no contexto africano, chegando a afirmar que aquele país não era onde se verificava a maior violação dos direitos humanos: não havia muitos prisioneiros políticos e até se publicavam alguns órgãos de informação relativamente críticos. Depois falou da independência recente de Angola e que o que lá se passava não seria muito diferente do que sucedia na maioria dos países africanos.
No fundo, e é isto que por vezes me irrita nos paladinos da defesa dos direitos humanos, é que o fazem em abstracto, sem ter em atenção o contexto, a situação política interna e a inserção dos países no confronto político e económico internacional. Neste exemplo, Daniel Oliveira comporta-se como o idealista, que tem ideias pré-concebidas e as tenta aplicar à realidade, mesmo que esta não se compraza com elas, e Clara Ferreira Alves como a realista, que analisa a situação concreta e a tenta interpretar e compreender em função dos dados objectivos de que dispõe.
Recuemos um pouco. Como sabem a situação dos movimentos de libertação de Angola era bastante complicada à data da independência daquele país. Um movimento progressista fraco, o MPLA, sem retaguardas protegidas, que não consegue criar uma verdadeira situação de perigo para o colonizador, e dois outros movimentos, a FNLA e a UNITA, de carácter regionalista, com clara expressão racista e ligados a países pouco respeitáveis, o primeiro, para além dos Estados Unidos, ao Congo de Mobutu, e o segundo, depois da sua colaboração com a PIDE, ao Governo racista e agressivo da África do Sul. No entanto, depois da independência o imperialismo americano e o racismo sul-africano foram derrotados e fortemente em Angola com a ajuda das tropas cubanas. Primeiro, em 10 de Novembro de 1975, na batalha de Quifandongo, que permite que o MPLA proclame em Luanda a independência de Angola, e posteriormente na de Cuito Cuanavale, a 23 de Março de 1988. Foi esta última derrota que possibilitou primeiro a independência da Namíbia e posteriormente o fim do apartheid na África do Sul (ver aqui, apesar de ser um post anterior à eleição de Barack Obama).
Eu sei que não podemos eternamente continuar presos a um passado já enterrado e completamente esquecido, que o MPLA dessa época não será igual ao de agora. No entanto, houve à época algumas páginas negras naquele movimento, como o assassinato de Nito Alves e de Sita Vales e o massacre de grande número de angolanos, em Maio de 1977, perpetrado por Agostinho Neto. Sabemos também o que representou para certos movimentos progressistas do Terceiro Mundo, como o MPLA, o desaparecimento da União Soviética, as implicações que isso trouxe para os seus referenciais ideológicos e para as suas economias, que eram apoiadas pelo “campo socialista”. Angola foi obrigada a fazer uma mudança brusca de uma economia dita de comando central para outra de predomínio capitalista. E depois sempre a guerra a consumir recursos e a debilitar a sua frágil estrutura social. Não é mistério para ninguém que a seguir aos acordos de Bicesse, em Maio de 1991, a realização de eleições, em Setembro de 1992, foi apressada e acabou num banho de sangue. A guerra continua até 2002, o que não permitiu qualquer veleidade de organização democrática do Estado. Estes são os factos, que temos que tomar em consideração.
Hoje, a África é um continente complicado. No espaço de poucas décadas tenta-se libertar do colonialismo e duma sociedade tribal, que permanece quase intacta nas suas estruturas mentais e organizativas e que permite que os chefes sejam corruptos e cleptómanos, como já o eram no passado. Tenta abraçar o espírito progressista de libertação nacional, que desempenha um papel importante nas suas independências, mas rapidamente é envolvida na Guerra Fria, com apoios soviéticos ou de outros países do campo socialista completamente desfasados do que era a sua realidade, ampliando para o pior as formas ditatoriais copiadas do “socialismo real” e inserindo-as em sociedades muito carentes e bastante desorganizadas. A juntar a isto a intervenção imperialista, sempre pronta a corromper e a instalar governos fantoches e incapazes. Para agravar a situação, o fim da Guerra-Fria, onde se teve que rapidamente fazer uma inversão de alianças, organizar a sociedade de outro modo e acabar com o passado marxista-leninista. É nesta conjuntura que o Governo do MPLA soube acabar com a guerra (2002), vencendo e matando um dos piores carrascos do povo angolano, Jonas Savimbi, tentando garantir a gestão nacional dos seus recursos e diversificar os seus apoios internacionais. Concentrando, é certo, o poder político e económico numa só família e nos seus amigos, permitindo que a classe dirigente viva numa ostentação iníqua em relação à pobreza do seu povo.
Estes últimos factos poderiam levar o Bloco de Esquerda a distanciar-se daquela visita. Não precisava de dizer, como todos os outros o fizeram, de que havia progressos democráticos em Angola. Poderia distribuir pelos media um comunicado bem feito a descrever o que foi a história recente daquele país e as agressões de que foi vítima e o papel que desempenha hoje na política e na economia o visitante e a sua família. Mas não precisava era de tão ostensivamente se recusar a comparecer nas cerimónias oficiais. No fundo, alinhou com todos aqueles, e não foram poucos, que na direita manifestaram a sua indignação com esta visita e com a recepção e a cordialidade com que se recebeu José Eduardo dos Santos (Ver o artigo de opinião de Helena Matos, no Público, e a intervenção de Pacheco Pereira, na Quadratura do Círculo, só para dar um cheirinho).
É evidente que este post não aborda, para além do caso pontual de Angola, o problema dos direitos humanos e a posição que a esquerda deve ter perante os mesmos e as suas opções face à sua discussão internacional. Deixemos este assunto melindroso e complexo para outra ocasião.
Clara Ferreira Alves, outra das intervenientes, contra argumentou, inserindo o que se passa em Angola no contexto africano, chegando a afirmar que aquele país não era onde se verificava a maior violação dos direitos humanos: não havia muitos prisioneiros políticos e até se publicavam alguns órgãos de informação relativamente críticos. Depois falou da independência recente de Angola e que o que lá se passava não seria muito diferente do que sucedia na maioria dos países africanos.
No fundo, e é isto que por vezes me irrita nos paladinos da defesa dos direitos humanos, é que o fazem em abstracto, sem ter em atenção o contexto, a situação política interna e a inserção dos países no confronto político e económico internacional. Neste exemplo, Daniel Oliveira comporta-se como o idealista, que tem ideias pré-concebidas e as tenta aplicar à realidade, mesmo que esta não se compraza com elas, e Clara Ferreira Alves como a realista, que analisa a situação concreta e a tenta interpretar e compreender em função dos dados objectivos de que dispõe.
Recuemos um pouco. Como sabem a situação dos movimentos de libertação de Angola era bastante complicada à data da independência daquele país. Um movimento progressista fraco, o MPLA, sem retaguardas protegidas, que não consegue criar uma verdadeira situação de perigo para o colonizador, e dois outros movimentos, a FNLA e a UNITA, de carácter regionalista, com clara expressão racista e ligados a países pouco respeitáveis, o primeiro, para além dos Estados Unidos, ao Congo de Mobutu, e o segundo, depois da sua colaboração com a PIDE, ao Governo racista e agressivo da África do Sul. No entanto, depois da independência o imperialismo americano e o racismo sul-africano foram derrotados e fortemente em Angola com a ajuda das tropas cubanas. Primeiro, em 10 de Novembro de 1975, na batalha de Quifandongo, que permite que o MPLA proclame em Luanda a independência de Angola, e posteriormente na de Cuito Cuanavale, a 23 de Março de 1988. Foi esta última derrota que possibilitou primeiro a independência da Namíbia e posteriormente o fim do apartheid na África do Sul (ver aqui, apesar de ser um post anterior à eleição de Barack Obama).
Eu sei que não podemos eternamente continuar presos a um passado já enterrado e completamente esquecido, que o MPLA dessa época não será igual ao de agora. No entanto, houve à época algumas páginas negras naquele movimento, como o assassinato de Nito Alves e de Sita Vales e o massacre de grande número de angolanos, em Maio de 1977, perpetrado por Agostinho Neto. Sabemos também o que representou para certos movimentos progressistas do Terceiro Mundo, como o MPLA, o desaparecimento da União Soviética, as implicações que isso trouxe para os seus referenciais ideológicos e para as suas economias, que eram apoiadas pelo “campo socialista”. Angola foi obrigada a fazer uma mudança brusca de uma economia dita de comando central para outra de predomínio capitalista. E depois sempre a guerra a consumir recursos e a debilitar a sua frágil estrutura social. Não é mistério para ninguém que a seguir aos acordos de Bicesse, em Maio de 1991, a realização de eleições, em Setembro de 1992, foi apressada e acabou num banho de sangue. A guerra continua até 2002, o que não permitiu qualquer veleidade de organização democrática do Estado. Estes são os factos, que temos que tomar em consideração.
Hoje, a África é um continente complicado. No espaço de poucas décadas tenta-se libertar do colonialismo e duma sociedade tribal, que permanece quase intacta nas suas estruturas mentais e organizativas e que permite que os chefes sejam corruptos e cleptómanos, como já o eram no passado. Tenta abraçar o espírito progressista de libertação nacional, que desempenha um papel importante nas suas independências, mas rapidamente é envolvida na Guerra Fria, com apoios soviéticos ou de outros países do campo socialista completamente desfasados do que era a sua realidade, ampliando para o pior as formas ditatoriais copiadas do “socialismo real” e inserindo-as em sociedades muito carentes e bastante desorganizadas. A juntar a isto a intervenção imperialista, sempre pronta a corromper e a instalar governos fantoches e incapazes. Para agravar a situação, o fim da Guerra-Fria, onde se teve que rapidamente fazer uma inversão de alianças, organizar a sociedade de outro modo e acabar com o passado marxista-leninista. É nesta conjuntura que o Governo do MPLA soube acabar com a guerra (2002), vencendo e matando um dos piores carrascos do povo angolano, Jonas Savimbi, tentando garantir a gestão nacional dos seus recursos e diversificar os seus apoios internacionais. Concentrando, é certo, o poder político e económico numa só família e nos seus amigos, permitindo que a classe dirigente viva numa ostentação iníqua em relação à pobreza do seu povo.
Estes últimos factos poderiam levar o Bloco de Esquerda a distanciar-se daquela visita. Não precisava de dizer, como todos os outros o fizeram, de que havia progressos democráticos em Angola. Poderia distribuir pelos media um comunicado bem feito a descrever o que foi a história recente daquele país e as agressões de que foi vítima e o papel que desempenha hoje na política e na economia o visitante e a sua família. Mas não precisava era de tão ostensivamente se recusar a comparecer nas cerimónias oficiais. No fundo, alinhou com todos aqueles, e não foram poucos, que na direita manifestaram a sua indignação com esta visita e com a recepção e a cordialidade com que se recebeu José Eduardo dos Santos (Ver o artigo de opinião de Helena Matos, no Público, e a intervenção de Pacheco Pereira, na Quadratura do Círculo, só para dar um cheirinho).
É evidente que este post não aborda, para além do caso pontual de Angola, o problema dos direitos humanos e a posição que a esquerda deve ter perante os mesmos e as suas opções face à sua discussão internacional. Deixemos este assunto melindroso e complexo para outra ocasião.
Acabei de assistir até onde a minha paciência aguentou o programa de Fátima Campos Ferreira, Prós e Contras. Uma vergonha. O representante oficial de Angola a defender com unhas e dentes o seu amado líder e a garantir que não havia corrupção e os empresários portugueses a acenarem com a cabeça, em sinal de assentimento. Por último, e foi quando desisti, Fátima Roque, ex-quadro superior da UNITA, e o delegado daquele partido em Portugal a garantirem que era tudo verdade, excepto a ausência de liberdade económica. Só um senhor, que eu penso que se chama Costa e Silva, e que me parece que pertence à empresa que gere os petróleos da Gulbenkian, a chamar a atenção para a miséria do povo angolano. Como era previsível o Bloco de Esquerda não foi convidado. Ia estragar a festa e aqui assim é que deveria denunciar todas as malfeitorias que quisesse, dentro é certo de uma perspectiva histórica e factual.
1 comentário:
É admissível aceitar como um oportunismo de circunstância a posição do BE relativamente à visita de Estado do presidente Eduardo dos Santos ao nosso país.De facto, resulta mais difícil e politicamente mais repreensível fazer tábua raza de certos valores ,tidos como universais,e postos em marcha pelo pragmatismo, do que fidelizar comportamentos e práticas políticas consequentes com pressupostos ideológicos axiomáticos.No caso em apreço há,todavia,circunstâncias económicas conjunturais que poderão legitimar às cedências aludidas.A "real politique" prevaleceu , mesmo sem ocultar a gulodice do capital.Depois de tanta turbulência nos principios já vai sendo tempo de enterrar as ingenuidades...
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