14/01/2012

Ainda Mário Soares, a propósito do livro de Rui Mateus, “Contos Proibidos” – II

Numa recente entrevista a uma televisão, das muitas que deu a propósito do seu livro, Um Político Confessa-se, Mário Soares afirma que Rui Mateus era um empregado de mesa que trabalhava em Londres e que, por saber bem inglês, tinha ajudado o PS no início. É evidente, como se compreende, estas declarações visavam diminuir aos olhos dos telespectadores a personagem cujo livro, Contos Proibidos, tanto o tinha incomodado. Mas de facto uma coisa é verdade e Rui Mateus, apesar de não o afirmar explicitamente, deixa perceber que Mário Soares precisava de alguém que soubesse bem inglês, já que ele não o sabia, para estabelecer contactos com os seus parceiros internacionais. É interessante que o autor dos Contos Proibidos referira a determinada altura que Mário Soares só convivia com os dirigentes da Internacional Socialista dos países do Sul: Espanha, França e Itália. Com os do Norte só em encontros formais. Compreende-se porquê. Mário Soares, não falando inglês, só com tradutor é que poderia contactar tais dirigentes. Na fotografia, que é reproduzida na capa do livro, vê-se Rui Mateus entre Mário Soares e Helmut Schmidt. Quase que jurava que estava lá a fazer de tradutor. No entanto, pelo que se percebe do livro, a sua passagem por um restaurante em Londres foi ocupação de juventude e a sua ascensão no PS e na Internacional Socialista foi mais do que a de um simples tradutor.

Dito isto, que eu valorizo bastante porque passei por situações semelhantes e compreendo bem o que é contactar alguém com quem não se pode falar uma língua comum, passemos a outros factos descritos no livro.

Um dos aspectos mais rocambolescos de toda a história é que ela gira sempre em volta da recolha de fundos para o PS. Já falei disso a propósito do 25 de Novembro, mas todo o livro está cheio de episódios entre o trágico e o cómico em que Rui Mateus, por incumbência de Mário Soares, se entregava juntamente com o tesoureiro do PS, que a determinada altura passou a ser um cunhado de Soares.

É interessante saber que um dos primeiros contributos importantes para o PS veio do coronel Kadhafi, no seguimento de uma visita de Mário Soares a Tripoli, em Novembro de 1974 (pag.63). Rui Mateus transcreve partes da carta que escreveu em nome do PS, demonstrando grande admiração pelo regime líbio. É igualmente interessante verificar que no livro de César de Oliveira, Os Anos Decisivos, Portugal 1962-1985, um testemunho (Editorial Presença, 1993), que também reli recentemente, aquele refira que um dos contactos que fez para obter ajuda para a UEDS tenha sido com a Líbia, do coronel Kadhafi. A UEDS era um pequeno partido político, criado em 1978, por Lopes Cardoso e outros companheiros, que na sua maioria eram dissidentes do PS. César de Oliveira refere a sua ida àquele país para participar numa Conferência Internacional de Professores e as conversações que então entabulou com os dirigentes líbios, que não tiveram sucesso, dado que aqueles lhe falaram na ala esquerda da FLAMA e da FLA, dois movimentos independentistas, respectivamente, da Madeira e dos Açores, facto que ele negou, falando de que eram sim da “extrema-direita e politicamente suspeitos” (pag. 226). Logo ali acabaram todas as facilidades. Ficou com a impressão que representantes daqueles movimentos já tinham passado por aquele país para obter fundos, alegando serem da sua ala esquerda. Como se vê, todos iam ao beija-mão ao coronel Kadhafi. Quando caiu em desgraça é que se transformou num ditador horrível.

Outro dos aspectos mais interessantes do livro é o pormenor da discrição da actividade da CIA e da Internacional Socialista (IS) no nosso país, principalmente durante o período revolucionário e depois nos anos seguintes, quando ainda era preciso ajuda para ancoragem de Portugal ao modelo ocidental. Já vimos o papel desempenhado pelo Comité criado pela IS no post anterior. Não me irei alongar no papel da CIA e do Secretário de Estado, do governo de Nixon, Henry Kissinger. Limitar-me-ei a afirmar que Rui Mateus, tal como Mário Soares, eram grandes amigos de Frank Carlucci, embaixador dos EUA em Portugal, mas também dos homens da CIA encarregues do nosso país.

Mas o mais interessante, para quem não anda a par dos meandros da política internacional, é a descrição que o autor dos Contos Proibidos faz da intervenção da CIA e dos serviços secretos ocidentais na destituição de alguns lideres da IS que estavam no poder.

O primeiro caso descrito foi o de Willy Brandt, chanceler da ex-República Federal Alemã, que aos olhos da CIA se tinha tornado suspeito. A 24 de Abril de 1974, o M15, os serviços secretos ingleses, decifram uma mensagem para a Alemanha Oriental de um colaborador íntimo de Brandt. Mas, não foi só isto, o chefe do M15 pensava que o chanceler era “um dos líderes de uma grande conspiração comunista controlada pela rádio a partir de Moscovo” (pag.105) e foi isto que transmitiu à Abwehr, os serviços secretos alemães, e que conduziu à demissão de Brandt, a 6 de Maio de 1974. Este foi substituído pelo número dois do Partido Social-democrata Alemão (SPD), Helmut Schmidt, cujas “credenciais pró-ocidentais e a amizade com os EUA estariam acima de qualquer suspeita” (pag. 105).

A segunda demissão relatada é o do primeiro-ministro trabalhista australiano, Gough Whitlam (no livro o seu nome aparece como Gough Whitland, o que não corresponde à verdade), que seria demitido pelo governador, que em representação da Rainha Isabel II exercia as funções de chefe de estado daquele país. Aquele primeiro-ministro tinha descoberto que os serviços secretos australianos tinham colaborado com a CIA no derrube de Salvador Allende. Na sequência de uma inspecção àqueles serviços, congelou as relações com a CIA. Posteriormente, decidiu não renovar a manutenção de uma estação de observação de comunicações via satélite dos EUA, situada no deserto australiano. O resultado deste confronto seria a sua demissão, substituído por um outro primeiro-ministro “mais amável com os serviços secretos ocidentais” (pag.105).

A terceira, é do primeiro-ministro inglês Harold Wilson. Este substituíra um amigo dos americanos, Hugh Gaitskell, que tinha morrido depois de uma visita à União Soviética, Os serviços secretos ingleses começaram a suspeitar que a morte de Gaitskell tinha sido planeada pelos soviéticos para preparar o caminho para o seu próprio “protegido: Warold Wilson” (pag.107). A partir de 1974, quando Wilsom regressa ao poder, o M15 estabelece um plano para desacreditar dirigentes trabalhistas e divulga informações sobre Wilson, considerando que era um perigo para a segurança, obrigando-o assim a demitir-se a 16 de Março de 1976, sendo substituído James Callaghan, que era seu Ministro dos Negócios Estrangeiros e que tinha elaborado o já anteriormente referido”plano Callaghan”.

Por último temos Olof Palme, que estava também na mira da curiosidade da CIA e que foi assassinado a 28 de Fevereiro de 1986, suspeita-se pelos seus próprios serviços secretos.

O mais interessante é que Mário Soares se transforma, depois de dúvidas iniciais de Kissinger se conseguiria deter a Revolução, no homem dos americanos para a Internacional Socialista, começando a ser visto pelos seus pares com essas funções.

As informações e os factos relatados neste livro, pelo menos em relação às ligações com os americanos e com a CIA e o Secretário de Estado Kissinger, são de certo modo confirmados por um livro, que também li recentemente, Carlucci vs. Kissinger, os EUA e a Revolução Portuguesa, de Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá (Dom Quixote, 2008), apesar dos autores nunca citarem o livro de Rui Mateus e darem à sua prosa um tom mais de investigação universitária, evitando, como faz Mateus, um ajuste de contas com Mário Soares.

Pelo descrito, parece-me, se ainda for possível, uma leitura deste livro pelos factos por ele relatados, tendo sempre a prevenção de que estamos perante alguém ressabiado e que conta a história da Revolução Portuguesa muito à sua maneira.

1 comentário:

Anónimo disse...

É perfeitamente possível lê-lo:

http://ferrao.org/documentos/Livro_Contos_Proibidos.pdf

Está online :-)