30/04/2008

Notas Soltas


I – A suposta carta do almirante Rosa Coutinho

Há tempos António Barreto, na sua crónica que publica regularmente aos Domingos no Público, comentou muito favoravelmente um livro recentemente editado e que se chama Holocausto. Este trata da descolonização e dos primeiros anos de independência de Angola. Nesse livro aparece em fac-simile uma carta forjada do almirante Rosa Coutinho ao dirigente do MPLA, Agostinho Neto, e que António Barreto dá como verdadeira, comentando horrorizado o seu conteúdo
O assunto foi pouco referido nos media, no entanto, JoãoTunes primeiro, no Água Lisa, e depois Victor Dias, no Tempo das Cerejas, aqui e ali, na blogosfera, e Ferreira Fernandes em comentário assinado no Diário de Notícias pegaram no assunto e denunciaram a marosca.
Esperava-se que António Barreto, reconhecendo ter citado uma carta forjada, se retratasse e pedisse desculpa ao visado. No último Público de Domingo (27/04) aparece finalmente uma desculpa de António Barreto e um grande artigo, bastante crítico em relação ao cronista, do provedor dos leitores daquele jornal, Joaquim Vieira.
A história está pois contada nos sites que fui indicando. Quem a quiser seguir pode ir clicando aqui e ali e rapidamente se aperceberá do conteúdo do livro e do artigo do António Barreto.
Nesta história não sei o que mais me espanta se a suposta ingenuidade de António Barreto, que afirma textualmente, no desmentido referido: “O almirante Rosa Coutinho acaba de negar, na revista Visão, a autoria da carta. Lamento ter utilizado como argumento esse documento apócrifo. As minhas desculpas ao senhor almirante e aos leitores”, se a desvergonha de alguém que acredita que uma carta, em papel timbrado, do alto-comissário para Angola poderia conter os desplantes referidos na sua crónica. Só um espírito embotado pelo pior anti-comunismo e com pouca coragem poderia produzir estas duas coisas: citar a carta e desmenti-la posteriormente, como se fosse um pormenor sem qualquer importância


II – A ignorância dos jovens sobre o 25 de Abril

Relataram os media que Cavaco Silva no discurso que pronunciou na Assembleia da República, no dia 25 de Abril, referiu-se à ignorância dos jovens sobre o significado daquela data. Para isso citou um inquérito de opinião efectuado pela Universidade Católica em que foram feitas três perguntas a que os jovens não souberam, na sua maioria, responder. A primeira era qual tinha sido o primeiro Presidente da República eleito democraticamente depois do 25 de Abril, a segunda, quantos Estados compunham actualmente a União Europeia e a terceira, se o PS tinha obtido ou não a maioria absoluta nas últimas eleições.
Acho que anda tudo doido, como é que a partir destas três perguntas, em que duas delas nada têm a ver com o 25 de Abril e outra só indirectamente, já que o Presidente da República foi eleito muito depois, se pode induzir que os jovens desconhecem o significado aquela data. A única conclusão que se pode tirar é de que têm fracos conhecimentos sobre a história contemporânea de Portugal, não têm informação suficiente sobre a União Europeia e não estão a par da situação política actual. Nada ficamos a saber sobre a ignorância dos jovens relativa ao 25 Abril.
Esta história, que motivou um variado leque de comentário dos nossos cronistas, tem no entanto pouco tem a ver com a realidade.
Isto porque o estudo da Universidade Católica, denominado Os Jovens e a Política, é um inquérito muito mais extenso, em que aquelas três perguntam estão relacionadas com os conhecimentos políticos da população em geral e não com o 25 de Abril em particular e não se dirigem exclusivamente aos jovens.
O próprio Presidente da República no seu discurso faz uma distinção entre os objectivos do estudo, por ele encomendado à Universidade Católica, e a relação da juventude com o 25 de Abril. No entanto, ao reproduzir unicamente aquelas três perguntas e ao limitar as respostas àquela faixa etária é também responsável pela confusão gerada, que levou os media, a partir daquelas perguntas, a afirmar que os jovens desconheciam o que tinha sido o 25 de Abril.
Mesmo o Público, que cita o estudo, é capaz de afirmar que “o que mais impressiona o chefe de Estado é "ignorância" dos jovens, pois muitos não sabem sequer o que foi o 25 de Abril, nem o que significou para Portugal”. Quanto à Televisão Pública foi o descalabro, não só tirou iguais conclusões sobre a ignorância dos jovens relativamente à data, como de seguida, em inquérito de rua, foi interrogar outros jovens com as mesmas perguntas, chegando à conclusão que eles nada sabem. Alguns, por acaso, até sabiam.
Depois, para demonstrar o desinteresse do cidadão por aquela data, vai à Costa da Caparica interrogar alguns banhistas porque é que eles estavam ali a apanhar Sol e não a comemorar o Dia da Liberdade. Já se sabe este tipo de perguntas só amplia, por contraste, o desinteresse das pessoas pelo significado da data. Quando a participação cívica se torna obrigação e dever e não puro prazer, o cidadão encontra imediatamente justificações para fugir a essa participação. Por isso, parece-me sempre de mau gosto, e um apelo sub-reptício à inacção, quando um inquérito televisivo opõe praia ou férias a deveres de cidadania.
Quanto à interrogação do Presidente da República relativa à ignorância dos jovens sobre o 25 de Abril, ao menos que, para a próxima, peça que ponham uma pergunta sobre aquela data.

22/04/2008

O Maio de 68


De repente, senti-me interpelado pela Joana Lopes, do blog Entre as Brumas da Memória, a falar do meu Maio de 68.
O Maio de 68 apanhou-me ainda na Faculdade de Ciências. Curso “longo”.
À época eu era militante do PCP, portanto, tínhamos um grande cuidado em saber qual era a posição do PCF sobre o que se passava em França. Por outro lado, em Portugal, começava-se a travar um luta importante contra a deriva esquerdista que ia afligir o movimento estudantil nos anos subsequentes, agravada é certo pelo Maio de 68. Posso garantir que se este assunto foi falado entre alguma juventude universitária, nesses mesmos meses, a verdade é que as suas maiores repercussões se verificaram no ano escolar seguinte, com a queda do Salazar e a nomeação do Marcelo Caetano.
Entre estes dois factos passou-se também a Primavera de Praga, que só em Agosto desse ano se tornou quente, com a ocupação daquele país pelas tropas do pacto de Varsóvia.
Quanto ao Maio de 68, há pelo menos da parte dos jovens universitários comunistas um grande distanciamento em relação às movimentações estudantis, que considerávamos esquerdistas. Opúnhamo-las à responsabilidade dos operários, que aos milhões se puseram a fazer greve e que foram posteriormente apoiados e enquadrados pelos sindicatos e pelo PCF. Líamos muita literatura vinda das Edições Sociais, ligadas ao PCF, que em post posterior poderei referenciar, e que nos afirmavam categoricamente que os estudantes nunca seriam vanguarda de nada, nem eram capazes de fazer a revolução. Só a classe operária era depositária dessa possibilidade de transformação. Aceitámos portanto os acordos que os sindicatos fizeram com o patronato para conseguir melhores regalias sociais.
No entanto, fiquei sempre com a ideia, via Rádio Argel, que nunca fui capaz de confirmar, que o nosso PCP se tinha demarcado do PCF. Não sei se isto foi imaginação minha se de facto aconteceu. Sei que em debate recente no Vitória (PCP) ninguém foi capaz de confirmar esta minha suspeita.
Todos conhecem o final desta história. De Gaulle apela às tropas francesas localizadas Alemanha e um milhão de franceses, com Malraux à frente, desfilam nos Campos Elísios. O PCF e PS francês sofrem uma grande derrota eleitoral, confirmando aquilo que nós já dizíamos, que tudo não tinha passado de uma “anarqueirada”, para utilizar a célebre expressão de Bento Gonçalves.
É evidente que para alguns de nós outras esperanças despontavam a leste. Conhecíamos pelas revistas o novo cinema checo (eu era dirigente do cine-clube universitário - CCUL), sabíamos que uma época de renovação e liberdade se abria naquele país. Acreditávamos, alguns de nós, na possibilidade de renovação do paradigma socialista. Eu estava de férias, na praia, quando soube da ocupação de Praga. Indignei-me. Tinha saído de Lisboa com a convicção, partilhada com mais camaradas, que os checos iam no bom caminho. Eis senão quando, em Setembro, chego a Lisboa, e a palavra de ordem do Partido era apoiar a invasão. Valeu-nos nessa altura uma célebre carta, não me recordo a quem era dirigida, de Fidel de Castro, a justificar a invasão e a falar da atitude egoísta de alguns países socialistas que queriam ganhar dinheiro com a ajuda a Cuba: referia-se à Jugoslávia. Penso que também tenho um livrinho, que saiu nessa altura, com estas discussões. Aceitámos pouco convencidos, mas sem dúvida pensando que tinha sido derrotado um perigoso desvio direitista.
Neste ínterim, Salazar cai da cadeira e Marcelo é nomeado. O movimento associativo estudantil ganha uma nova dinâmica. Pelo menos, na Faculdade de Ciências, o novo Governo autoriza que haja um processo eleitoral para instalar de novo a Associação de Estudantes, eleita pelos seus sócios, pois estava a ser regida por uma Comissão Administrativa nomeada pelo Governo.
É nesta perspectiva que o Maio de 68 se começa a fazer sentir. Para a Reunião Inter-Associações (RIA), que agrupava todas as Associações Estudantis de Lisboa, é eleito no princípio do novo ano escolar um novo Secretariado, de que faziam parte o Alberto Costa (o actual Ministro da Justiça), à época militante do PCP, o Jaime Gama (Presidente da Assembleia da República), e ligado, julgo eu, à linha PS, o Serras Gago, não sei o que é feito dele, e a Teresa Melhano, boa amiga que há muito tempo não vejo.
Logo no início as Associações pretendem confrontar o novo Governo com a agitação estudantil e por isso são lançadas algumas manifestações e contestações. Sei que não tiveram êxito, mas que levaram a uma situação caricata, que está relacionada com o Maio de 68. Jaime Gama, em nome do Secretariado da RIA, devia levar a um plenário um moção de convocação de uma manifestação. Não o fez e a moção ficou sempre no seu bolso. Era inevitável a sua demissão do Secretariado. O seu discurso de justificação pela atitude tomada começou assim: “Lisboa não é Nanterre” e depois partia para outros considerandos de que eu já não me recordo.
Quanto às eleições em Ciências, a influência do Maio de 68 começava-se a fazer sentir. Foi criado um mural onde todos podiam escrever o que lhes apetecia. Nada disto se passava anteriormente. Os discursos dos candidatos, principalmente dos mais jovens, o que não era o meu caso – fui candidato a vice-presidente – eram muito mais soltos, os temas de Maio começavam a fazer o seu percurso. Era possível fazer reuniões, que provavelmente teriam um nome especial, de acordo com a linguagem do Maio francês, por tudo e por nada. Muitos dos participantes, alguns chegados mesmo de França reclamavam-se da míriade dos pequenos partidos existentes entre os estudantes franceses. Tive dificuldade em adaptar-me a este novo estilo, fui considerado um revisionista de direita e progressivamente fui-me afastando da Associação.
Tempo depois e na linha do Maio de 68 rebenta a crise académica em Coimbra.
Tenho a certeza que depois de Maio, e com o atraso típico de Portugal, a Universidade não foi a mesma. Já em 69, penso que no final do ano lectivo 68/69, o Secretariado da RIA cai e o Arnaldo de Matos é eleito para ele. Em Ciências nunca mais ninguém do PCP pôs os pés na Direcção da Associação de Estudantes. As direcções seguintes eram na sua totalidade “esquerdistas”. Mesmo, o “pobre” cineclube que durante tantos anos tinha sido influenciado pelo PCP acaba os seus dias com direcções do MRRP.
Penso que o Maio de 68 esquerdizou de forma irreversível, até ao 25 de Abril, o movimento estudantil. Quanto às liberdades de género, sexuais e outras, penso que, desde 62-64, elas se foram progressivamente introduzindo no estrito universo universitário, tendo-se alargado por esta época. Mas ainda me recordo que havia alguns jovens que tinham sérios problemas com os pais, que não os autorizavam a passar noites fora de casa ou mesmo a poderem sair à noite.
Estas recordações feitas de chofre, sem recurso a papeis ou a bibliografia, poderão vir a ser completadas se para tanto acharem qualquer interesse nestas minhas memórias.

20/04/2008

Ponto da Situação


Pela leitura rápida que fiz de alguns blogs de referência reparei como as minhas intervenções na blogosfera se encontravam tão desfasadas da realidade. Acontecia-me a mim o mesmo que aos doutores da Igreja que, na Bizâncio cercada, continuavam a discutir o sexo dos anjos. Por isso resolvi entre dois post sobre Leituras de um Convalescente voltar um pouco à realidade.

I – Eleições italianas
Primeiro gostaria de manifestar o meu espanto e tristeza por os comunistas italianos ou os seus herdeiros não terem qualquer representação parlamentar. Aquele que tinha sido o mais forte partido Comunista do Ocidente, que maior contribuição tinha dado para a actuação dos comunistas em regime de democracia parlamentar e que era herdeiro do legado desse grande teórico que tinha sido Antonio Gramsci, deixa de estar representado no Parlamento e no Senado italianos. Um pesadelo.
A nossa direita exultou. Teresa de Sousa afirma no Público, de 16/4, que esse facto “representa uma saudável clarificação” e continua: “aliás, se há um sinal de novidade e de regeneração do sistema político italiano ele vem daí – da esquerda que não é essa "esquerda". Talvez esperançada que em Portugal se dê alguma vez essa mesma clarificação, que o PCP e BE deixem de vez de estar presentes no Parlamento e que o PS sozinho e sem qualquer constrangimento possa afirmar que representa toda a esquerda.
Segundo afirmar o óbvio, os italianos gostam imenso destas personagens histriónicas, que de Mussolini a Berlusconi, sempre representaram o pior da vida política italiana. Mas isto é uma constatação, que não justifica em nada o que se passou.
Terceiro referir por graça que uma das causas que foi apontada por Daniel de Oliveira, no seu interessante artigo no Arrastão, para a perda de votos dos comunistas foi a sua integração numa coligação, a que chamaram Esquerda Arco-Íris (Sinistra L’Arcobaleno), tendo a foice e o martelo desaparecido dos boletins de voto. Pelo contrário, em Portugal o PCP sempre concorreu debaixo de outra sigla (excepto nas duas primeiras eleições do pós-25 de Abril) e foi a direita, com a cumplicidade do PS, que obrigou a incluir nos boletins de voto o seu símbolo.
É evidente que tudo isto são opiniões avulsas, de quem está longe da realidade italiana e não dispõe de instrumentos de apreciação que lhe permitam fazer a análise do resultado das eleições naquele país.

II – O “entendimento” nos professores
Já muito se escreveu sobre este acordo, que os sindicatos designam por “entendimento”, entre os professores representados pelos seus órgãos de classe e o Ministério da Educação.
Penso que todos aqueles que, como o Miguel Sousa Tavares, queriam uma política de porrete para meter os sindicatos na ordem se vêm agora frustrados porque estes foram a solução do problema e não, como eles julgavam, a causa do mesmo.
Por outro lado, achei graça que uns anos depois da vaga esquerdista ter sido derrotada neste país, ainda alguns ingénuos e outros ressabiados, como a Ana Benavente, porque não tiveram o protagonismo que gostariam de ter, clamam que os sindicatos traíram a vontade dos professores. Já se sabe que os media fizeram imediatamente grande eco destas posições e assim entrevistaram um professor que declarou que mais valia morrer de pé do que ceder. Só a grande ingenuidade e a falta de experiência política-sindical pode levar alguns a fazerem estas declarações e a tomarem esta posição. Quem já anda nisto há muitos anos e se bateu sempre contra o esquerdismo e a falsa radicalidade pode perceber que este tipo de posições surge sempre quando a luta abrange novas camadas. A falta de experiência histórica é sempre má conselheira.

III - A lei do divórcio
Por minha grande ignorância eu pensava que o problema do divórcio estava resolvido em Portugal, eis senão quando o BE apresenta uma lei que, segundo eu depreendi, acabava com o divórcio litigioso e permitia, por opção única e exclusiva de um dos cônjuges, a separação. Na altura não dei grande importância ao assunto. Mas eis que o BE volta à carga, depois de ver o seu primeiro projecto chumbado, e o PS no mesmo dia anuncia que irá apresentar um lei que, com diferenças que parece que são significativas, vai no mesmo sentido. Achei em princípio bem.
Feito o anúncio, não é que a Igreja faz constar que está contra e um dos seus membros chega a clamar que estávamos perante um Estado “militantemente ateu”. “Coitado” do Sócrates, podem-no acusar de muitas coisas mas desta é que ele de certeza não estava à espera.
A Igreja tem, quanto a mim, toda a liberdade para se pronunciar sobre este assunto, não pode é fazer afirmações extravagantes como aquela que reproduzo e acho que é um disparate vir clamar contra o fim do divórcio litigioso, quando este, segundo as estatísticas, não representou no ano passado mais do que 6% do total de divórcios e hoje os que se realizam por mútuo consentimento estão, parece-me, bastante facilitados sem, que eu conheça, objecções de fundo daquela instituição.
Mas o mais grave, não foi a posição da Igreja, foi o que disseram os comentadores de direita, desde Vasco Pulido Valente a Constança Cunha e Sá, que criticaram e disseram que estávamos perante uma grave ofensa à Igreja feita pelo Governo do PS. Estas críticas são feitas unicamente porque pensam que o PS cedeu ao BE, ou seja, às “causas fracturantes” deste partido, abandonando por instantes a sua política de direita de que eles tanto gostam. Até porque é gente que nem católica é, que já se divorciou inúmeras vezes e que portanto não é por razões de fé, mas pela sua atávica formação de direita que toma posição contra esta legislação.

Como o texto já vai longo deixo para outra oportunidade o caso Fernanda Câncio e a demissão de Luís Filipe Menezes

16/04/2008

Leituras de um convalescente II – Ryszard Kapuscinski (1932-2007)


Neste conjunto de leituras que fui fazendo durante a minha convalescença referir-me-ei, por conveniência de apresentação, a dois livros que li do jornalista polaco Ryszard Kapuscinski, falecido o ano passado.
Há muito que conhecia as traduções que regularmente a Campo das Letras vinha fazendas das reportagens que aquele autor fazia dos diversos conflitos africanos. No entanto, porque o tema nunca me pareceu suficientemente aliciante, nunca tinha adquirido qualquer dos seus livros, até que finalmente, porque o assunto me parecia mais próximo das minhas preocupações políticas, resolvi comprar e ler O Império (Campo das Letras, 2005).
É um livro profundamente crítico do que foi o”império” soviético e que descreve bem o seu estertor final. Relembro unicamente o primeiro capítulo, passado durante a juventude do autor, em que este descreve de forma profundamente negativa a chegada das tropas soviéticas à sua aldeia natal. Esta ficava situada naquela parte da Polónia que foi atribuída pelo pacto germano-soviético à URSS e que foi ocupada por esta em Setembro de 1939, quando Hitler invadiu a Polónia. Havia razões históricas para a URSS reivindicar e ocupar aqueles territórios, pois ficavam a leste de uma linha que o insuspeito Lord Curzon tinha estabelecido no final da I Guerra Mundial como fronteira natural entre a Polónia e o nascente Estado soviético e que aquela ocupou por ter saído vitoriosa na guerra que travou contra este. Eram territórios da Ucrânia e da Bielo-Rússia, que ainda hoje continuam a fazer parte daqueles dois países. No entanto, isso não autorizava a URSS a cometer as barbaridades que se conhecem, como o massacre dos oficiais polacos em Katyn, nem o que é descrito pelos olhos de uma criança no livro de Kapuscinski.
Impressionado pela leitura daquele livro pus-me a ler durante o período de convalescença as Andanças com Heródoto (Campo das Letras, 2007) e o recentemente publicado Os Cínicos Não Servem para Este Ofício, Conversas Sobre o Bom Jornalismo (Relógio de Água, 2008).
Do primeiro livro, que não achei especialmente interessante, retirei a história da primeira viagem do autor ao Ocidente, a Roma, a caminho da Índia para fazer uma reportagem sobre aquele país, que na altura tinha adquirido a independência, e a homenagem, sempre constante ao longo de todo o livro, a Heródoto, que, com o seu livro Histórias, tinha dado origem na Grécia antiga à história, como disciplina credível.
Relembro, porque gostei muito do filme, O Paciente Inglês, de Anthony Minghella, recentemente falecido, que transportava sempre consigo um exemplar das Histórias de Heródoto.
Quanto ao pequeno livro de Kapuscinski sobre jornalismo, para além de uma entrevista em que o autor denuncia a situação actual em que se faz jornalismo, com os jornalistas completamente submetidos aos grandes monopólios dos media, pareceu-me ser um livro inútil, a viver do prestígio do seu autor. Aquele não passa de um conjunto de entrevistas que Kapuscinski deu em Itália nos longínquos anos de 90 e que a organizadora, Maria Nadotti, reuniu para uma edição original em 2002, e que foi recuperada em 2008, à míngua de novas ideias, por uma editora nacional.
Espero no próximo capítulo voltar a temas mais interessantes e convidativos.

Leituras de um convalescente – O nazismo e o fim de Hitler

Saí do hospital com uma contratura lombar. Um jeito, ao deslocar-me na cama, no último dia de internamento, fez com que em vez de sair do hospital pelo meu próprio pé tivesse que ser transportado numa cadeira de rodas. Daí resultou que a primeira semana em casa fosse passada deitado na cama, com um saco de água quente nas costas. E, para entreter o tempo, livros à volta. Já não era a primeira vez que isto me sucedia e em qualquer dos casos pude sempre pôr em dia as minhas leituras.
Começar por onde? Por aquele que me pareceu mais simples e mais descritivo. Assim, estriei-me com o livro de António Louçã e de Isabelle Paccaud, O Segredo da Rua do Século, Ligações perigosas de um dirigente judeu com a Alemanha nazi (1935-1939) (Fim de Século, 2007). É a descrição do desmoronar de uma reputação, de alguém acima de qualquer suspeita, que sempre, no entanto, tivera com o fascismo português as melhores relações, mas de quem não se suspeitava até ao momento que tivesse sido condecorado pela Alemanha nazi. Livro bastante interessante, relata inclusivamente o papel que o jornal O Século desempenhou na propaganda daquele regímen entre nós. Estas revelações provocaram alguns engulhos à comunidade judaica portuguesa, que não acredita naquelas ligações e apareceu em força em sua defesa. Quanto a mim não me restam dúvidas. Sempre me recordo o nome do Moses Amzalak como um dos figurões do salazarismo.
Passei em seguida para A Queda, Hitler e o fim do Terceiro Reich, de Joachim Fest (Guerra e Paz, 2007). Em jeito de chamariz a editora acrescenta na sua capa “O livro que deu origem ao Filme”. De facto, este livro juntamente com o depoimento da última secretária de Hitler, Traudl Junge, expresso em Até ao Fim, Um relato verídico da secretária de Hitler (Dinalivro, 2005), que eu já tinha lido, inspiraram o argumento do filme A Queda, Hitler e o fim do Terceiro Reich, do realizador alemão Olivier Hirschbiegel. Este filme tinha provocado em mim um grande impacto na altura em que se estreou, ao ponto de ter comprado o DVD respectivo quando este apareceu à venda e tê-lo visionado quase fotograma a fotograma. Isto porque me impressionou de sobremaneira o universo claustrofóbico em que os dirigentes do III Reich tinham vivido os seus últimos dias, bem como o suicídio dos principais dirigentes nazis, que é amplamente mostrado no filme. Conhecia o caso de Hitler e da sua mulher, de Goering, que não é relatado no filme, e que se verificou durante o julgamento do responsáveis nazis em Nuremberga, provavelmente já teria lido referências ao de Goebbels, mas nunca ao da sua mulher e ao assassinato dos seus cinco filhos e muito menos ao da oficialidade mais responsável, que na parte final do filme, e penso que com veracidade, quase que praticam um suicídio colectivo.
Do livro não me ficou mais do que aquilo que eu sabia do filme. Quem, como eu, tiver a curiosidade de conhecer os últimos dias do nazismo pode de facto ler os dois livros que serviram de inspiração ao filme. Mas penso que seria igualmente interessante contar a história do cadáver de Hitler, ou do que restou dele, e como a sua falsa ausência alimentou durante tanto anos a Guerra-fria. Um trabalho documentado e sério sobre isto exige-se, pelo menos eu não o conheço.
Por último, e integrado neste conjunto de livros li o O Livro de Hitler, (Alethëia, 2006) que de acordo com o que é dito na capa constitui um “Dossier secreto do NKVD, encomendado por Josef W. Estaline, organizado com base no interrogatório feito em Moscovo, entre 1948 e 1949, a Otto Günsche, oficial das SS e responsável pela agenda político-militar de Hitler, e a Heinz Linge, mordomo de Hitler”. O livro tem um prefaciador e dois organizadores. O prefácio é um pequeno compêndio de revisionismo histórico na linha de que Hitler estava bem para Estaline. Cito alguns exemplos, só para recordar aos meus leitores em que consiste esta nova maneira de tratar a história da Segunda da Guerra Mundial. Interroga-se o prefaciador: “o que terá levado ao interesse mútuo entre os líderes das duas mais fanáticas ideologias que, no século XX, precipitaram Europa no abismo?” Ou seja, para este prefaciador, a responsabilidade pela II Guerra Mundial é de Hitler e Estaline, os estados ocidentais nada tiveram a ver com isto. Mas para além de outros mimos, bem mais graves, temos igualmente este: “A vitória militar, que ditava a ofensiva contra a União Soviética, levou-a a aliar-se a Estados Ocidentais com ideologias pelo menos tão opostas como a da Alemanha de Hitler, nomeadamente os Estados Unidos e a Grã-Bretanha”. Ou seja, o prefaciador esquece que em Junho de 1941, quando Hitler invadiu a URSS, os Estados Unidos ainda não tinham entrado na guerra, e que foi Churchill, sozinho a enfrentar o esforço de guerra contra a Alemanha nazi, quem propôs de imediato uma aliança com a URSS.
Não será este o espaço indicado para debater este novo revisionismo histórico, encabeçado hoje pela direita e por alguma esquerda sem referenciais históricos. Quanto ao livro em si é uma história, que engloba os últimos dias do nazismo e de Hitler, redigida para agradar aos soviéticos, já que os narradores estavam prisioneiros daqueles. Não retive na memória nada que merecesse especial destaque.
Em próximo capítulo irei fazer referência a outras leituras sobre temas diferentes.

13/04/2008

O “meu caso”, as procissões hospitalares e “A Sala Magenta”


Quando passava longas noites sem dormir no hospital, arranjava sempre modo de passar as horas elaborando mentalmente o que poderia escrever quando tivesse acesso ao meu blog. Era uma forma de me manter intelectualmente activo e de ir entretendo a insónia que sempre me ataca nos períodos pós-operatórios.
Pensava contar o “meu caso”, descrever tudo aquilo que padecia e que me tinha levado até àquela situação. Pensava que do ponto de vista da medicina o assunto poderia interessar. Por outro lado, como hoje está na moda criar blogs onde se vai descrevendo o sofrimento dos pacientes, pensei que tinha chegado a minha vez de mostrar os meus dotes de escritor.
Chegado a casa e tendo deparado com um computador avariado e uma enorme falta de vontade de fazer seja o que for, reparei como seria ridículo pôr-me a descrever a minha situação, mesmo que ela tivesse qualquer interesse clínico.
Por isso, passados que são já quase três meses sobre a minha operação, resta-me aquilo que também me entretinha o tempo e me dava alento para aguentar o internamento hospitalar, que é descrever a situação em que decorre hoje o dia a dia de uma enfermaria, neste caso com doentes recentemente operados.
Na altura teria de certeza muito mais queixas e imprecações contra o hospital público. Hoje, e porque é um assunto que de cada vez que sou internado me desperta a atenção e que até ao momento nunca encontrei resposta para ele, limito-me a relatar unicamente este caso.
Existem três turnos diários de enfermeiros e de pessoal auxiliar, penso ser esta a designação correcta para aquele pessoal que nos hospitais nos fornece as refeições, faz a cama e atende, em primeira linha, os nossos pedidos. Os turnos são de oito horas, começando o primeiro às oito da manhã, o segundo às quatro da tarde e o terceiro, penso que às onze, isto porque, segundo me disseram, é para o pessoal não sair tão tarde dos hospitais e não ter problemas de transportes e de maus encontros.
Ora a mudança de turno durante a tarde não tem qualquer problema. Dantes, quando as famílias tinham um horário muito limitado de visitas, correspondia à hora do lanche e ao enxotar das mesmas. O mesmo já não sucede com a mudança da noite. Assim, o que se verifica, é que o turno que vai sair prepara tudo para, pelo menos, deixar deitados os doentes e as luzes da enfermaria apagadas. Isso acontece aí pelas dez horas. Ora, à meia-noite e meia, um pouco menos ou um pouco mais, quando estamos no nosso melhor dos sonos – aqueles que conseguem adormecer – eis que percorrem os corredores e nos entram pela enfermaria a dentro, os auxiliares a perguntarem se queremos beber uma coisa a que eles chamam “leitinho quente”, que nem é leite, nem está quente, ou então um chá que eu, porque não aprecio, nunca soube se sabia de facto a qualquer coisa de parecido. Por outro lado, os enfermeiros vêm-nos dar os últimos comprimidos e medir-nos a tensão e a temperatura. Acrescente-se que os comprimidos são transportados num carro, normalmente pouco oleado, que percorre os corredores a fazer uma chinfrineira dos diabos. Um pouco depois daquela intromissão, os enfermeiros ou o pessoal auxiliar vem rapinar os sofás que estão atribuídos aos doentes, e onde estes passam o dia, levando-os em comboio pelos corredores fora até ao local onde, penso eu, aproveitam para descansar durante a noite, já que não devem dispor de camas para esse efeito. Esses sofás são distribuídos novamente pelas enfermarias na manhã seguinte, mas muitas vezes não se recupera o sofá que se tinha ganho na véspera. É sempre um risco e um motivo para estar de olho alerta.
A situação anteriormente descrita repete-se com a mudança de turno da manhã. Como o pessoal sai às oito, tem que deixar os doentes já medicados e com o tal “leitinho” tomado, que não é equivalente ao pequeno-almoço, já que este só virá pelas nove, dez horas. Ou seja, pelas seis e meia, na melhor das hipóteses sete, lá vem novamente a procissão com os carros e o “leitinho”, e os doentes, que muitas vezes só agora conseguiram adormecer, são acordados violentamente para se dar início a esta nova operação.
A isto acresce, que aqueles que conseguem readormecer são novamente acordados pelas senhoras da limpeza, que entre as oito e as nove horas vêm proceder à limpeza da enfermaria. Acendem as luzes, por vezes ligam a televisão sem ninguém lhes pedir, conversam durante todo o tempo entre si e lá nos impedem mais uma vez de dormir.
Fui encontrar uma descrição semelhante, muito mais bem escrita é evidente, no belo romance de Mário de Carvalho, A Sala Magenta, em que a personagem principal, que funciona como narrador, diz a determinada altura (página 22): “Do hospital guardava a memória duma voz feminina … e do escarcéu brutal de todas as mudanças de turno, em que o pessoal irrompia pelos corredores aos berros, com pancadas nas portas, e chinfrim de latas batidas, como se fossem agredir os doentes, a ideia mais próxima que tinha da invasão dos bárbaros….”
Penso sinceramente que estes horários deveriam ser modificados. Provavelmente dir-me-ão que não há outra solução, que os doentes devem ser medicados àquelas horas, que um diabético não pode estar muito tempo sem ingerir qualquer coisa. Tudo isso são boas razões, mas até hoje nunca ninguém me conseguiu explicar devidamente, porque se interrompe tão violentamente o sossego daqueles que tanto necessitam dele.
Não gostaria de terminar este meu post sem reconhecer que sou a favor do Serviço Nacional de Saúde e por isso recorri a ele. Que do ponto de vista médico e mesmo de enfermagem sempre fui excelentemente tratado. Que utilizaram cirurgicamente as melhores técnicas que tinham à sua disposição e que os médicos e enfermeiros sempre se esforçaram com grande qualidade por executarem as suas tarefas com a maior probidade e competência. Este agradecimento era devido e indispensável.

03/04/2008

Iniciar actividade

Ao fim de mais de dois meses e meio de paragem forçada eis que retomo o contacto com a blogosfera. Poder-se-ia depreender do meu último post que as razões seriam motivadas pela falta de saúde, o que também é verdade. Mas, para minha desgraça, foi o computador que entrou em colapso, frequentemente mostrava um daqueles ecrãs azuis que são sempre sinónimo de erro fatal e de que nada se pode fazer senão recomeçar o mesmo tantas vezes quantas ele queira. Por fim, o disco rígido, entrou em colapso e o o fabricante não teve outra alternativa senão recolhê-lo e eu esperar pacientemente que o mesmo fosse arranjado. Hoje vim a descobrir que parece estar na mesma. Este meu post é só para vos avisar que se desaparecer outra vez a culpa é do computador e não do meu estado de saúde.
Um abraço a todos.