Quando passava longas noites sem dormir no hospital, arranjava sempre modo de passar as horas elaborando mentalmente o que poderia escrever quando tivesse acesso ao meu blog. Era uma forma de me manter intelectualmente activo e de ir entretendo a insónia que sempre me ataca nos períodos pós-operatórios.
Pensava contar o “meu caso”, descrever tudo aquilo que padecia e que me tinha levado até àquela situação. Pensava que do ponto de vista da medicina o assunto poderia interessar. Por outro lado, como hoje está na moda criar blogs onde se vai descrevendo o sofrimento dos pacientes, pensei que tinha chegado a minha vez de mostrar os meus dotes de escritor.
Chegado a casa e tendo deparado com um computador avariado e uma enorme falta de vontade de fazer seja o que for, reparei como seria ridículo pôr-me a descrever a minha situação, mesmo que ela tivesse qualquer interesse clínico.
Por isso, passados que são já quase três meses sobre a minha operação, resta-me aquilo que também me entretinha o tempo e me dava alento para aguentar o internamento hospitalar, que é descrever a situação em que decorre hoje o dia a dia de uma enfermaria, neste caso com doentes recentemente operados.
Na altura teria de certeza muito mais queixas e imprecações contra o hospital público. Hoje, e porque é um assunto que de cada vez que sou internado me desperta a atenção e que até ao momento nunca encontrei resposta para ele, limito-me a relatar unicamente este caso.
Existem três turnos diários de enfermeiros e de pessoal auxiliar, penso ser esta a designação correcta para aquele pessoal que nos hospitais nos fornece as refeições, faz a cama e atende, em primeira linha, os nossos pedidos. Os turnos são de oito horas, começando o primeiro às oito da manhã, o segundo às quatro da tarde e o terceiro, penso que às onze, isto porque, segundo me disseram, é para o pessoal não sair tão tarde dos hospitais e não ter problemas de transportes e de maus encontros.
Ora a mudança de turno durante a tarde não tem qualquer problema. Dantes, quando as famílias tinham um horário muito limitado de visitas, correspondia à hora do lanche e ao enxotar das mesmas. O mesmo já não sucede com a mudança da noite. Assim, o que se verifica, é que o turno que vai sair prepara tudo para, pelo menos, deixar deitados os doentes e as luzes da enfermaria apagadas. Isso acontece aí pelas dez horas. Ora, à meia-noite e meia, um pouco menos ou um pouco mais, quando estamos no nosso melhor dos sonos – aqueles que conseguem adormecer – eis que percorrem os corredores e nos entram pela enfermaria a dentro, os auxiliares a perguntarem se queremos beber uma coisa a que eles chamam “leitinho quente”, que nem é leite, nem está quente, ou então um chá que eu, porque não aprecio, nunca soube se sabia de facto a qualquer coisa de parecido. Por outro lado, os enfermeiros vêm-nos dar os últimos comprimidos e medir-nos a tensão e a temperatura. Acrescente-se que os comprimidos são transportados num carro, normalmente pouco oleado, que percorre os corredores a fazer uma chinfrineira dos diabos. Um pouco depois daquela intromissão, os enfermeiros ou o pessoal auxiliar vem rapinar os sofás que estão atribuídos aos doentes, e onde estes passam o dia, levando-os em comboio pelos corredores fora até ao local onde, penso eu, aproveitam para descansar durante a noite, já que não devem dispor de camas para esse efeito. Esses sofás são distribuídos novamente pelas enfermarias na manhã seguinte, mas muitas vezes não se recupera o sofá que se tinha ganho na véspera. É sempre um risco e um motivo para estar de olho alerta.
A situação anteriormente descrita repete-se com a mudança de turno da manhã. Como o pessoal sai às oito, tem que deixar os doentes já medicados e com o tal “leitinho” tomado, que não é equivalente ao pequeno-almoço, já que este só virá pelas nove, dez horas. Ou seja, pelas seis e meia, na melhor das hipóteses sete, lá vem novamente a procissão com os carros e o “leitinho”, e os doentes, que muitas vezes só agora conseguiram adormecer, são acordados violentamente para se dar início a esta nova operação.
A isto acresce, que aqueles que conseguem readormecer são novamente acordados pelas senhoras da limpeza, que entre as oito e as nove horas vêm proceder à limpeza da enfermaria. Acendem as luzes, por vezes ligam a televisão sem ninguém lhes pedir, conversam durante todo o tempo entre si e lá nos impedem mais uma vez de dormir.
Fui encontrar uma descrição semelhante, muito mais bem escrita é evidente, no belo romance de Mário de Carvalho, A Sala Magenta, em que a personagem principal, que funciona como narrador, diz a determinada altura (página 22): “Do hospital guardava a memória duma voz feminina … e do escarcéu brutal de todas as mudanças de turno, em que o pessoal irrompia pelos corredores aos berros, com pancadas nas portas, e chinfrim de latas batidas, como se fossem agredir os doentes, a ideia mais próxima que tinha da invasão dos bárbaros….”
Penso sinceramente que estes horários deveriam ser modificados. Provavelmente dir-me-ão que não há outra solução, que os doentes devem ser medicados àquelas horas, que um diabético não pode estar muito tempo sem ingerir qualquer coisa. Tudo isso são boas razões, mas até hoje nunca ninguém me conseguiu explicar devidamente, porque se interrompe tão violentamente o sossego daqueles que tanto necessitam dele.
Não gostaria de terminar este meu post sem reconhecer que sou a favor do Serviço Nacional de Saúde e por isso recorri a ele. Que do ponto de vista médico e mesmo de enfermagem sempre fui excelentemente tratado. Que utilizaram cirurgicamente as melhores técnicas que tinham à sua disposição e que os médicos e enfermeiros sempre se esforçaram com grande qualidade por executarem as suas tarefas com a maior probidade e competência. Este agradecimento era devido e indispensável.
Pensava contar o “meu caso”, descrever tudo aquilo que padecia e que me tinha levado até àquela situação. Pensava que do ponto de vista da medicina o assunto poderia interessar. Por outro lado, como hoje está na moda criar blogs onde se vai descrevendo o sofrimento dos pacientes, pensei que tinha chegado a minha vez de mostrar os meus dotes de escritor.
Chegado a casa e tendo deparado com um computador avariado e uma enorme falta de vontade de fazer seja o que for, reparei como seria ridículo pôr-me a descrever a minha situação, mesmo que ela tivesse qualquer interesse clínico.
Por isso, passados que são já quase três meses sobre a minha operação, resta-me aquilo que também me entretinha o tempo e me dava alento para aguentar o internamento hospitalar, que é descrever a situação em que decorre hoje o dia a dia de uma enfermaria, neste caso com doentes recentemente operados.
Na altura teria de certeza muito mais queixas e imprecações contra o hospital público. Hoje, e porque é um assunto que de cada vez que sou internado me desperta a atenção e que até ao momento nunca encontrei resposta para ele, limito-me a relatar unicamente este caso.
Existem três turnos diários de enfermeiros e de pessoal auxiliar, penso ser esta a designação correcta para aquele pessoal que nos hospitais nos fornece as refeições, faz a cama e atende, em primeira linha, os nossos pedidos. Os turnos são de oito horas, começando o primeiro às oito da manhã, o segundo às quatro da tarde e o terceiro, penso que às onze, isto porque, segundo me disseram, é para o pessoal não sair tão tarde dos hospitais e não ter problemas de transportes e de maus encontros.
Ora a mudança de turno durante a tarde não tem qualquer problema. Dantes, quando as famílias tinham um horário muito limitado de visitas, correspondia à hora do lanche e ao enxotar das mesmas. O mesmo já não sucede com a mudança da noite. Assim, o que se verifica, é que o turno que vai sair prepara tudo para, pelo menos, deixar deitados os doentes e as luzes da enfermaria apagadas. Isso acontece aí pelas dez horas. Ora, à meia-noite e meia, um pouco menos ou um pouco mais, quando estamos no nosso melhor dos sonos – aqueles que conseguem adormecer – eis que percorrem os corredores e nos entram pela enfermaria a dentro, os auxiliares a perguntarem se queremos beber uma coisa a que eles chamam “leitinho quente”, que nem é leite, nem está quente, ou então um chá que eu, porque não aprecio, nunca soube se sabia de facto a qualquer coisa de parecido. Por outro lado, os enfermeiros vêm-nos dar os últimos comprimidos e medir-nos a tensão e a temperatura. Acrescente-se que os comprimidos são transportados num carro, normalmente pouco oleado, que percorre os corredores a fazer uma chinfrineira dos diabos. Um pouco depois daquela intromissão, os enfermeiros ou o pessoal auxiliar vem rapinar os sofás que estão atribuídos aos doentes, e onde estes passam o dia, levando-os em comboio pelos corredores fora até ao local onde, penso eu, aproveitam para descansar durante a noite, já que não devem dispor de camas para esse efeito. Esses sofás são distribuídos novamente pelas enfermarias na manhã seguinte, mas muitas vezes não se recupera o sofá que se tinha ganho na véspera. É sempre um risco e um motivo para estar de olho alerta.
A situação anteriormente descrita repete-se com a mudança de turno da manhã. Como o pessoal sai às oito, tem que deixar os doentes já medicados e com o tal “leitinho” tomado, que não é equivalente ao pequeno-almoço, já que este só virá pelas nove, dez horas. Ou seja, pelas seis e meia, na melhor das hipóteses sete, lá vem novamente a procissão com os carros e o “leitinho”, e os doentes, que muitas vezes só agora conseguiram adormecer, são acordados violentamente para se dar início a esta nova operação.
A isto acresce, que aqueles que conseguem readormecer são novamente acordados pelas senhoras da limpeza, que entre as oito e as nove horas vêm proceder à limpeza da enfermaria. Acendem as luzes, por vezes ligam a televisão sem ninguém lhes pedir, conversam durante todo o tempo entre si e lá nos impedem mais uma vez de dormir.
Fui encontrar uma descrição semelhante, muito mais bem escrita é evidente, no belo romance de Mário de Carvalho, A Sala Magenta, em que a personagem principal, que funciona como narrador, diz a determinada altura (página 22): “Do hospital guardava a memória duma voz feminina … e do escarcéu brutal de todas as mudanças de turno, em que o pessoal irrompia pelos corredores aos berros, com pancadas nas portas, e chinfrim de latas batidas, como se fossem agredir os doentes, a ideia mais próxima que tinha da invasão dos bárbaros….”
Penso sinceramente que estes horários deveriam ser modificados. Provavelmente dir-me-ão que não há outra solução, que os doentes devem ser medicados àquelas horas, que um diabético não pode estar muito tempo sem ingerir qualquer coisa. Tudo isso são boas razões, mas até hoje nunca ninguém me conseguiu explicar devidamente, porque se interrompe tão violentamente o sossego daqueles que tanto necessitam dele.
Não gostaria de terminar este meu post sem reconhecer que sou a favor do Serviço Nacional de Saúde e por isso recorri a ele. Que do ponto de vista médico e mesmo de enfermagem sempre fui excelentemente tratado. Que utilizaram cirurgicamente as melhores técnicas que tinham à sua disposição e que os médicos e enfermeiros sempre se esforçaram com grande qualidade por executarem as suas tarefas com a maior probidade e competência. Este agradecimento era devido e indispensável.
1 comentário:
Ora aqui está um depoimento interessante e útil, que podia e devia ter consequências práticas a bem do repouso dos doentes.
Assim é que é. Mesmo na condição de doente há que contribuir para melhorar as coisas. Grande Jorge...
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