05/03/2009

Uma Conferência quase clandestina de Domenico Losurdo

Já um pouco atrasado venho dar conta de uma conferência que assisti na quinta-feira da semana passada. Como o tipo de posts que escrevo têm sempre muita prosa, e meteu-se o Congresso PS de permeio, não me sobrou vagar para relatar este evento quase clandestino, porque foi muito pouco divulgado.
A Conferência teve lugar no ISCTE, foi patrocinada por João Arsénio Nunes, professor daquela escola, e integrada nas cadeiras que ministra, e pelo site ODiario.info, em que um dos co-editores é Miguel Urbano Rodrigues, que esteve presente na mesa. O orador foi o historiador e filósofo marxista italiano Domenico Losurdo, professor na Universidade de Urbino. Com obra vasta publicada em Itália e quase toda ela traduzida no Brasil (no final apresentarei uma curta bio-bibliografia) e noutros países.
Pelo nome dos organizadores penso que os meus leitores já perceberam que estávamos perante uma realização bastante próxima do PCP. João Arsénio Nunes, meu amigo de longa data e que me convidou para estar presente, é um dos poucos historiadores que permanece filiado naquele partido. Quanto ao site em questão, tendo provavelmente vida própria, não difere muito das intervenções patrocinadas pelo PCP.
Com este pano de fundo, muitos se interrogarão se valerá a pena assistir a este tipo de conferências, onde a ortodoxia dominante no nosso PCP tornaria manifestamente impossível qualquer interrogação que fugisse ao discurso que predomina naquele partido. A verdade é que muitas das intervenções de alguns, não direi de todos, dos teóricos que ainda restam no movimento comunista internacional, muitos deles professores universitários, com obra de vulto, têm uma outra abertura e compreensão da realidade do que foi o “campo socialista”, visto participarem activamente na discussão destes temas nos seus países, que está longe de se reduzir aos chavões e palavras de ordem produzidos pelo nosso PCP. Mesmo neste campo, do aprofundamento do marxismo, da discussão teórica e da investigação histórica, o nosso atraso é manifesto.
Dito isto, concluo que foi proveitoso assistir a esta comunicação, cujo tema era “O movimento comunista no século XX”.
O que disse o autor. Começou primeiro por um preâmbulo que eu subscrevo por inteiro e que é o seguinte (a tradução da comunicação está transcrita em ODiario.info): “Como resumir o balanço histórico do movimento comunista no século que passou? Hoje em dia, o discurso acerca da sua “falência” é tão pouco discutido que não chega a suscitar objecções, nem mesmo na esquerda. A ideologia e a historiografia actualmente dominantes parecem querer compendiar o balanço de um século dramático numa historieta edificante, que pode resumir-se deste modo: no princípio do século XX, uma rapariga fascinante e virtuosa, a menina Democracia, foi agredida, primeiro por um bruto, o senhor Comunismo, a seguir por outro, o senhor Nazi-Fascismo; aproveitando as contradições entre eles e através de peripécias complexas, a jovem consegue por fim libertar-se da terrível ameaça; tornando-se entretanto mais madura mas sem nada perder do seu fascínio, a menina Democracia consegue coroar o seu sonho de amor pelo casamento com o senhor Capitalismo; rodeado pelo respeito e a admiração gerais, o feliz e inseparável casal gosta de levar a vida principalmente entre Washington e Nova Iorque, entre a Casa Branca e Wall Street. Assim sendo, não há mais lugar a dúvidas: é evidente e inglória a falência do comunismo.”
Esta historieta, tirando o “casamento como senhor capitalismo”, pode ser subscrita por todos os historiadores conservadores, liberais e até por algumas boas almas que povoam a nossa Internet, e assenta fundamentalmente na luta da democracia contra os totalitarismos, de esquerda ou de direita, e tem no pacto germano-soviético a expressão máxima da união entre aquelas duas doutrinas totalitárias e que é um dos pilares em que assenta a historiografia do Século XX.
Depois a comunicação, fugindo bastante àquilo que nos é proposto no título, passa a explanar as três grandes descriminações (racial, censitária e sexual) que ainda nas vésperas de Outubro de 1917 (Revolução de Outubro) desvirtuavam a democracia e que se mantiveram por bastantes anos, até quase aos nossos dias. Um exemplo é a descriminação racial existente nos Estados Unidos da América. Foi igualmente referida a ligação que houve entre a descriminação racial nos Estados Unidos e os teóricos do racismo anti-semita do Terceiro Reich.
Outra descriminação era o voto censitário, ou seja, só podiam votar aqueles que tinham um determinado rendimento, e até muito recentemente as mulheres também estavam arredadas das eleições.
O autor defende depois o ponto de vista de que foi a Revolução de Outubro, o aparecimento da União Soviética e do movimento comunista internacional que influenciaram decisivamente o progressivo desaparecimento das três descriminações referidas.
O desaparecimento daquele país e o enfraquecimento do movimento comunista está a influenciar um retorno ou a restauração daquelas descriminações e, na sequência dessa afirmação, são dados alguns exemplos recentes.
A terminar o autor descreve a complexa dialéctica que resultou da interacção entre os dois sistemas que co-existiram e que, do meu ponto de vista, serve para caracterizar a situação actual.
A partir de Outubro de 1917 desenvolveu-se uma dialéctica complexa e contraditória. O sistema capitalista, reforçado pela absorção de elementos derivados da bagagem ideal e política do movimento comunista e da própria realidade do socialismo real, soube depois exercitar por sua vez uma atracção irresistível sobre a população dos países caracterizados por um socialismo que, desde o início, traz impressos na face os sinais da guerra desencadeada e imposta pelo Ocidente, e que depois se torna cada vez mais ossificado e esclerótico até se tornar a caricatura de si próprio. Quer dizer, os regimes nascidos na onda da revolução bolchevique não souberam confrontar-se concretamente com o Ocidente que eles próprios tinham contribuído para modificar em profundidade. Em última análise venceu o sistema político-social que melhor soube responder ao desafio lançado ou objectivamente constituído pelo sistema oposto e concorrente. E foi assim que, também neste caso, a inicial vitória parcial conseguida pelo movimento operário e comunista, com a capacidade demonstrada de desenvolver a sua eficácia histórica concreta também no campo adversário, se transformou numa derrota de alcance estratégico.”
Eu diria que se a Revolução de Outubro forçou a longo prazo a introdução de uma democracia plena no sistema capitalista o inverso não se verificou e quando isso aconteceu ou foi reprimida ou então abalou definitivamente o sistema. Esta última faceta não foi desenvolvida pelo autor e seria interessante que o fosse.
Como se pode ver pela leitura daquele último parágrafo, e para os mais interessados recomendo a consulta de todo o texto e de uma outra conferência que aquele foi fazer no dia seguinte a Coimbra (ver aqui), as suas reflexões, sendo críticas em relação à ideologia dominante e mesmo para aquela acantonada à social-democracia e que no nosso país tem algum reflexo no Bloco de Esquerda, não me parecem que sejam representativas do actual pensamento do PCP. O mais que podemos dizer é que são estes os ideólogos que, a nível internacional, mais próximo estão daquele partido e menos se sentem incomodados com a sua presença.

Para terminar e num apontamento muito pessoal, um dos temas abordados por Losurdo foi o dos Untermenschen, o termo com os alemães classificavam os judeus, que era a tradução naquela língua do termo, Under Man, dos ideólogos racistas americanos, quando estes se referiam aos negros. A tradução portuguesa poderia ser sub-homem. Pois eu senti-me assim naquela conferência. Depois de anos de convívio com alguns membros do sector intelectual do PCP de Lisboa, e que eu conhecia bem, acharam naquela sessão que eu era um ser inexistente e por isso nem para mim olharam, nem esboçaram um simples cumprimento. Para certos militantes do PCP, aqueles que alguma vez deixaram de ser do seu partido, passam a ser como Untermenschen.

Pequena biografia e bibliografia de Domenico Losurdo

Nascido em 1941 nos arredores de Bari, é actualmente Professor catedrático da Universidade de Urbino e Presidente da Sociedade Internacional Hegel-Marx.
Um dos principais campos de investigação de Domenico Losurdo situa-se na reconstrução da história política da filosofia clássica alemã, de Kant a Marx, tendo ainda dedicado ensaios a Nietzsche e Heidegger.
Mais recentemente dedicou-se a uma leitura crítica da tradição liberal e das origens ideológicas do fascismo e do nazismo, na sua relação com as tradições coloniais e imperialistas.
A mais recente das suas obras, Stalin. Storia e critica di una leggenda nera, suscitou intenso debate e o comentário elogioso, entre outros, de Gianni Vatimo: “Graças aos documentos e citações presentes no livro conseguimos entender como Stalin foi sobrevalorizado por muitíssimos estadistas, como Churchill e De Gasperi e filósofos como B. Croce, que sempre olharam Stalin com respeito, simpatia e mesmo admiração”

(biografia elaborada por João Arsénio Nunes - JAN - e que acompanhava o convite).

Bibliografia. Obras recentes
  • Hegel, Marx e la tradizione liberale. Roma, Editori Riuniti, 1988. (Hegel, Marx e a Tradição Liberal. Liberdade, Igualdade, Estado. Editora Unesp, 1998).

  • Democrazia o bonapartismo. Trionfo e decadenza del suffragio universale. Torino, Bollati Boringhieri, 1993 (Democracia e Bonapartismo. Triunfo e Decadência do Sufrágio Universal. Editora UNESP, 2004).

  • Il Revisionismo Storico. Problemi e Miti. Laterza, Roma-Bari, 1999.

  • Hegel e la Germania. Filosofia e questione nazionale tra rivoluzione e reazione. Milano, Guerini-Istituto Italiano per gli Studi Filosofici, 1997.

  • Democrazia o bonapartismo. Trionfo e decadenza del suffragio universale. Torino, Bollati Boringhieri, 1993. (Democracia e Bonapartismo. Triunfo e Decadência do Sufrágio Universal. Editora UNESP, 2004).

  • Antonio Gramsci, dal Liberalismo al "Comunismo Critico". Roma, Gamberetti, 1997. (Antonio Gramsci: do Liberalismo ao “Comunismo Crítico”. Editora Revan, 2006).

  • Fuga dalla storia? Il movimento comunista tra autocritica e autofobia. La Città del Sole, Napoli, 1999. (Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa Vistas de Hoje. Editora Revan, Rio de Janeiro, 2004 - edição ampliada em relação à italiana).

  • Ipocondria dell’impolitico. La critica di Hegel ieri e oggi. Milella, Lecce, 2001.

  • Nietzsche, il ribelle aristocratico. Biografia intellettuale e bilancio critico. Bollati Boringhieri, Torino, 2002.

  • Controstoria del liberalismo. Laterza, Roma-Bari, 2005. (Contra-História do Liberalismo. Idéias & Letras, Aparecida, 2006).

  • Liberalismo. Entre Civilização e Barbárie. Editora Anita Garibaldi, 2006.

  • Il linguaggio dell'Impero. Lessico dell'ideologia americana. Laterza, Roma-Bari 2007.

  • Stalin. Storia e critica di una leggenda nera. Carocci Editore, Roma, 2008.

(Bibliografia elaborada por mim, com base na de JAN. Entre parêntesis as edições brasileiras. Para a bibliografia completa ver).

1 comentário:

Anónimo disse...

-Deixa estar sr.doutor na próxima será recebido com passadeira vermelha onde lhe serão prestadas todas as vénias e salamaleques que vossa senhoria deseja, será recebido que nem o sr ingenheiro sobrinho do tio o foi na feira de Espinho num dia de apagão futebolístico.