09/11/2009

A Queda de um muro. Histórias pessoais


Já agora começo por algumas histórias pessoais.

Visitei o Muro de Berlim pela primeira vez em Setembro de 1978. Lembro-me da data, porque estava em viagem pela RDA (República Democrática Alemã) e alguém disse que o Papa João Paulo I tinha morrido, como foi um pontificado breve, memorizei esse facto e depois foi só ver no Google.
Era daquelas viagens organizadas pela Associação Amizade Portugal-RDA, com a colaboração da Agência Abreu, que tinha funcionários comunistas especialmente preparados para isso. Fomos logo no início levados à porta de Brandenburgo e ao Muro que a rodeava e onde pude verificar que do lado de lá havia umas escadinhas onde os turistas podiam subir para espreitar por cima do muro para o lado de cá, o mundo comunista. Numa sala, que se situava perto, um oficial da ex-RDA demonstrou por a+b como tinha sido necessário a sua construção e descreveu as provocações diárias do “imperialismo”. Como a ilustrar o que ele tinha acabado de dizer lá vimos um helicóptero da NATO quase a ultrapassar o muro, sobrevoando perigosamente a zona onde nós estávamos. Fiquei convencido. Estava de repente e involuntariamente na fronteira onde se confrontavam o “mundo socialista” e o capitalista.
Depois, nas conversas com o guia e com algumas trabalhadoras com quem falei (a minha mulher sabia alemão) vim com uma ideia mais matizada do que era a RDA.
Lembro-me do guia ter dito que o verdadeiro milagre económico tinha acontecido na Alemanha de Leste, porque Estaline, depois da Guerra, tinha desmantelado toda a indústria, que já não era muita naquela zona da Alemanha e tinha-a transportado para a URSS, como compensação pelos estragos sofridos. Pelo contrário, a Alemanha Ocidental foi enormemente beneficiada com o Plano Marshall dos americanos. Este facto foi confirmado por mim em várias fontes escritas.
Uma das coisas que me tinha espantado era ver nos locais de trabalho a fotografia dos trabalhadores que se tinham destacado no último mês. Com alguma ousadia perguntei, por intermédio da minha mulher, às trabalhadoras que encontrámos numa espécie de bar onde fomos beber uns copos, como é que os mesmos eram seleccionados. Simples, era rotativo, umas vezes eram escolhidos uns outras vezes outros, chegava a todos.
Depois lembro-me de uma conversa sobre batatas. Se todos os dias também comíamos batatas. Pelos vistos isso acontecia com aquelas trabalhadoras. Achámos graça. Mas sinceramente já não me recordo do que se falou mais.
Lembro-me de ter perguntado ao guia se estavam publicadas na RDA as obras completas de Rosa Luxemburgo, a revolucionária social-democrata alemã, e heroína da Revolução Espartaquista de Berlim de 1918 e que tinha sido assassinada por militares, com a cumplicidade do Presidente e do Ministro do Interior, que pertenciam ao partido social-democrata alemão. Tive uma semi-resposta, este lembrou-me que aquela socialista defendia que a liberdade era também a liberdade de divergir.
Sei que quando cheguei a Lisboa e houve uma reunião na Associação Portugal-RDA para discutirmos colectivamente a viagem eu fiz críticas e levantei alguns problemas resultantes do que tinha ouvido e visto. Sei que uma das camaradas rapidamente se apressou a classificar as trabalhadoras que tínhamos encontrado naquela noite como “putinhas”. E porquê, imagino eu, porque além de estarem à noite a beber copos sem macho, acharam, não de mim, que já era um pouco entrado, mas de dois homens jovens que integravam a excursão, que eram lindíssimos e disseram-no claramente à minha mulher. Já se sabe que a camarada, provavelmente uma simpatiquíssima senhora, tinha já idade para ser mãe delas e portanto já em menopausa adiantada. Mas sei que as minhas opiniões foram criticadas por alguns camaradas que velavam pela ortodoxia da visita.

A segunda vez que fui à RDA, devo confessar, foi a expensas do Conselho Português para a Paz e Cooperação (CPPC), subsidiário do Conselho Mundial da Paz. Fui ao Festival de curta-metragem e de cinema de animação de Leipzig, que tinha como mote a Paz. Depois de uma consulta no Google verifiquei que o Festival continua, já vai na 52ª edição. Este ano teve lugar entre 26 de Outubro e 1 de Novembro. O festival chama-se DOK Leipzig e continua a exibir o mesmo tipo de filmes.
A minha deslocação devia ter tido lugar no início dos anos 80 e em data igual à da última edição, porque quando fui já não tinha quase nenhumas férias para gozar.
Por essa época, tinha retomado as minhas funções de cineclubista, que tinha desempenhado no nos anos da minha juventude, e pertencia à direcção do ABC Cine-Clube de Lisboa. No PCP, integrava a Direcção do Sector Intelectual de Lisboa, com a responsabilidade pelo que restava dos cine-clubistas da capital. Carlos Aboim Inglês, de que já falei vai para dois posts, achou por bem que quem fosse aquele Festival, devia ser quem tinha responsabilidades no Sector Intelectual por aquela área. Isto porque a ida a este tipo de eventos era muito disputada e havia uns enviados crónicos que asseguravam sempre a representação portuguesa nestes acontecimentos que se realizavam a Leste. Lembro-me que um dos camaradas que costumava ir andou freneticamente atrás de mim, porque não estava interessado em perder o barco em futuras idas, para que eu lhe desse toda a documentação que tinha recebido e lhe prestasse todas as informações. Deu-me pena. Mas fiquei a compreender melhor a natureza humana.
A delegação portuguesa que ia em nome do CPPC era composta por mim e pelo realizador Luís Filipe Rocha. Tinha sido eu que tinha sugerido o seu nome, pois tinha visto o seu filme Cerromaior (1981) e tinha gostado. O nome mereceu a concordância do CPPC e o realizador estava disponível para ir. Penso que nunca se deixou seduzir pelo viu, mas na altura era um homem de esquerda, que tinha feito a Fuga (1977), sobre a fuga de Dias Lourenço do forte de Peniche. Nunca percebi o que o levou a fazer Camarate (2000), mas os destinos do cinema em Portugal são insondáveis e hoje já sou incapaz de opinar sobre cinema português.
Directamente convidadas pelo Festival ou por outras organizações houve mais gente que fazia parte da delegação portuguesa. Foi e veio connosco no avião uma ex-locutora da televisão, na altura bastante nova e bonita, a Fátima Medina, que por ser casada, ou ter sido casada com um Medina, da família do Cunhal, mal chegou a Leipzig passou a ter um crachá com o nome de Medina Cunhal ou Cunhal Medina. Sei que o nome de Cunhal aparecia. Boa carta de apresentação para abrir todas as portas na RDA. Por sinal era muito simpática e demo-nos muito bem, mas suspeito que não viu nenhum dos filmes do Festival. Ou estava a comprar coisas ou a namoriscar, segundo diziam as más-línguas.
Quem já lá estava e penso que tinha projectos cinematográficos com a RDA, era o Manuel Costa e Silva, o director de fotografia de alguns filmes portugueses, já falecido. Fomos um dia visitar em Dresden o museu Gemäldegalerie Alte Meister (Galeria de Pintura dos Velhos Mestres), que eu já conhecia da primeira viagem, onde se podia ver grande parte da obra de Vermeer. Foi um reconhecimento e desde aí nunca mais me separei deste pintor, que encima a página principal deste blog. A obra A leiteira está no Rijksmuseum, de Amesterdão.
A situação mais ridícula porque passei nesta viagem foi alguém do cine-clube me ter pedido para levar à namorada, que estava a estudar em Leipzig, um embrulho, que eu religiosamente levei com algum custo, porque era grande, na bagagem de cabine. Entreguei à dona e ninguém teve o cuidado de me informar qual o seu conteúdo, coisa que se fosse hoje nunca faria, sem saber o que estava a transportar. Depois, maldosamente alguém insinuou que eu tinha transportado para a RDA pensos higiénicos, que era coisa que lá não havia.
Mas há mais episódios. Quando chegávamos era-nos dado, coisa que eu não sabia, uma pequena quantia de marcos da RDA para gastarmos na alimentação, pois só nos pagavam a viagem e o hotel. Eu levava marcos do ocidente. Os suficientes para cobrir as despesas que fosse necessário fazer. Nessa altura não havia ainda os cartões de crédito. Já se sabe que não resisti a trocar os meus marcos ocidentais no mercado negro, que não era negro, pois toda a gente o fazia às claras, por marcos da RDA. O câmbio oficial era de um marco ocidental para um oriental. Pois eu consegui por um ocidental obter quatro orientais. Pode-se dizer que foi a primeira vez na vida que me senti verdadeiramente rico. Não sabia onde gastar o dinheiro. Comprei livros de arte, comi bem, adquiri discos ainda de vinil, que como eu não percebia a língua não eram aquilo que eu queria, mas acho que no final lá consegui despachar todos os marcos, pois ninguém os aceitava no Ocidente. O Luís Filipe Rocha aproveitou para se vestir e comprar velhas máquinas de fotografia, que eram quase objectos de museu, que depois teve alguma dificuldade em fazer passar na fronteira.
Havia muitos estudantes portugueses e africanos a estudar em Leipzig, que aproveitaram a nossa estadia para falarem com os portugueses que frequentavam o Festival. Foram conversas longas. Falámos com grande abertura. Se a Stasi nos escutava, era em português. No fundo, todos éramos críticos disto e daquilo, mas todos aceitávamos o regime. Hoje se tentar espremer o que se disse não me recordo de nada que fosse relevante.
Também conviveu com a nossa delegação o Luandino Vieira, o escritor de Angola, que estava lá com o filho. Houve críticas veladas como era possível que um jovem, em idade militar e com o país em guerra, estar a usufruir das “delícias” do socialismo.
Houve algumas cenas também caricatas ou que, pelo menos, eu não estava habituado. O presidente do ABC Cineclube que desde sempre tinha ido àquele Festival - não foi quem me atormentou o juízo por ser eu a ir e não ele, foi outra personagem medíocre e “pequenina” - pediu para que eu comprasse no aeroporto uma garrafa de Vinho de Porto e a entregasse ao Director do Festival em seu nome e no meu e ao mesmo tempo deixasse no ar a ideia dos filmes do Festival poderem ser exibidos em Portugal, como já anteriormente tinha sucedido. Lá pedi uma entrevista ao senhor, com intérprete para português e depois de umas amabilidades, puxei da garrafa e dei-lhe. O homem ficou, pareceu-me, atrapalhado, porque não tinha nada para me retribuir. Foi buscar uma medalha em barro do Festival e deu-ma. Ainda hoje a conservo, não sei a onde.
Os filmes nunca chegaram a vir. O Costa Silva, que também se considerava dono daquele certame, manifestou na altura igualmente interesse e tantos galos para uma só poleiro era manifestamente demais para mim, ainda por cima não sendo eu da “arte”. Andava nisto porque gostava de cinema e era militante do PCP. Anos depois estava rapidamente a deixar o cineclubismo e a direcção do Sector Intelectual do PCP, onde só voltei pela mão da Helena Medina, a mulher do Edgar Correia.
Por último, aquilo que fui lá fazer que era ver os filmes do Festival. Houve coisas que gostei muito e que gostaria de rever. Lembro-me de alguns documentários que tinham imagens dos comícios de Hitler que me impressionaram extraordinariamente. Houve reposição de alguns documentários sociais de Joris Ivens, o cineasta holandês, mestre do documentarismo e comprometido com a esquerda – pelos vistos este ano houve mais uma vez uma retrospectiva de Joris Ivens. Quando cheguei, fiz um relato para a página cultural de O Diário, que deve andar por aí. Faz parte dos meus objectivos, se ainda tiver tempo, pôr os textos que fui escrevendo ao longo da vida na net.
O regresso foi acidentado, porque, por razões que hoje já não me recordo, só me deram bilhete de ida, dizendo depois que no local me davam o de regresso. Estive praticamente até ao fim, eu e o Luís Filipe Rocha, à espera desse bilhete. O realizador não estava muito preocupado, achava que não o deixavam lá ficar. Eu, como o principal responsável pela delegação do CPPC e sempre preocupado com situações menos claras, comecei-me a enervar. Ainda por cima vi a Fátima Medina, que regressava connosco, já com bilhete e eu sem nada. Por último, já nem me recordo como, à última da hora, lá apareceram os bilhetes salvadores.
É evidente que nada disto tem a ver com o Muro de Berlim. Mas está mais ou menos relacionado e conta a história de uma delegação portuguesa a um país que já desapareceu.

A terceira história passa-se já depois de 89, mas pouco depois. Deve ter sido no início 1990. Fui a Berlim Ocidental, ainda não se tinha dado a reunificação alemã e o muro ainda existia, mas já meio escaqueirado. Podia-se, se quisesse, ir ao lado de lá. Mas não fui.
Fui numa viagem em serviço. Quando as reuniões acabavam e durante o fim-de-semana visitei Berlim Ocidental, que não conhecia e fui várias vezes até ao Muro e ao Checkpoint Charlie. Passeei pelo jardim situado perto da Porta de Brandenburgo e do Muro, o Tiergarten. Fui uma vez acompanhado de um velho conhecido meu, investigador francês em áreas afins às minhas, que tinha militado no PCF e não sei se naquela altura ainda por lá andava. Visitámos o Muro ou o que dele restava como os derrotados do comunismo. Vendiam já na altura pedaços do mesmo, mas eu fui apanhar alguns do chão, muito pequenos, porque os maiores eram para venda. Também se vendiam medalhas e quinquilharia do Leste. Mas a imagem para mim mais imorredoura foi a que vi, ao passear no jardim, uma série de famílias com carrinhos de supermercado cheios de televisões e vídeos, todas a dirigirem-se para Leste. Foi igualmente nesse mesmo jardim que eu vi autocarros carregados, pelo menos na parte de trás dos bancos, com televisões e vídeos. Não vale a pena fazer comentários. Foi a realidade que eu observei com os meus próprios olhos. Um mundo tinha acabado.

Em próximos episódios tirarei as conclusões.
PS. (11/11/09): Mão amiga sugeriu-me que corrigisse no final o nome do Luís Filipe Rocha, que estava trocado com o de outra pessoa. Aproveitei também para rever o texto.

5 comentários:

Operário olhando os outros muros disse...

Blábláblá..-
. "Mas a imagem para mim mais imorredoura foi a que vi, ao passear no jardim, uma série de famílias com carrinhos de supermercado cheios de televisões e vídeos, todas a dirigirem-se para Leste. Foi igualmente nesse mesmo jardim que eu vi autocarros carregados, pelo menos na parte de trás dos bancos, com televisões e vídeos. Não vale a pena fazer comentários. Foi a realidade que eu observei com os meus próprios olhos. Um mundo tinha acabado."
-Tem graça que todas os fins de semana o mesmos acontece, cá prós lados de Matosinhos, onde carros e carretas autocarros e afins cheios de galegos se atafulham de "trastes" do género em direcção à fronteira da real republica da Galiza.

Em próximos episódios tirarei as conclusões.

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Que paciência a sua ter-me lido até ao fim

Raimundo Narciso disse...

Oh meu isto não é um post é um romance. Dado o adiantado da hora, o sono a pesar e a saltar parágrafos não pude dar a atenção devida.
Também visitei o país. Em 1967, em 1986 (?)e por fim em 2001.
Abraço

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Um abraço também

Operário com Hirudoid se necessário . disse...

-Essa da "Que paciência a sua ter-me lido até ao fim" -Deve ter a ver com a topada num dos trastes e ficou a doer prá xúxú.