07/10/2008

Na morte de Diniz Machado - Recordações do Primeiro Festival de Cinema de Lisboa


Por vezes dá-me para recordar e à míngua de não ter notícias para comentar, apesar de não faltarem assuntos, resolvi contar como conheci o Diniz Machado e como participei no Primeiro Festival de Cinema de Lisboa, organizado pela Casa da Imprensa, em 1964.
Eu pertencia à Direcção do Cine Clube Universitário de Lisboa (CCUL). O movimento cine-clubista de Lisboa, apesar de não ter nada a ver com a organização daquele festival, tinha boas relações com a Casa da Imprensa, e penso até que iria ter alguma participação no júri ou na atribuição de um prémio. Coube-me, à falta de alguém para a meio do dia ter disponibilidade para reuniões, ir falar com o Diniz Machado, um dos principais organizadores daquele Festival.
Já não me recordo da longa conversa que tive com o Diniz Machado, sei que ele estava preocupado com a possibilidade do júri, de forte influência católica, como convinha no tempo do fascismo, atribuir o prémio a uma xaropada espanhola chamada Dulcineia, inspirada numa personagem do D. Quixote, em vez de a Fellini 8 ½, de Frederico Fellini, que estava também a concurso.
O Festival, que tinha oficialmente o pomposo nome de I Festival Internacional de Arte Cinematográfica, teve lugar no cinema S. Luís e os filmes que foram exibidos eram propostos pelas Distribuidoras. Todos eles foram previamente visados pela censura, o que implicou cortes significativos em algumas das obras exibidas. Na maioria dos casos iriam pouco tempo depois ter estreia comercial nas salas de cinema. Era o Festival possível no tempo do fascismo.
Sei que houve mais dois, em 1965 e 1966, em que foram permitidos filmes apresentados directamente pelo produtor ou por entidades não comerciais, não sei se com cortes da censura, mas de certeza com a autorização explícita daqueles serviços.
Deste Festival retenho duas coisas. A primeira está relacionada com os bilhetes que foram atribuídos aos cine-clubes. A mim, porque tinha a missão de fazer crítica de alguns dos filmes, a Direcção do CCUL deu-me bilhetes para todas as sessões, que era uma cadeira num camarote, nos outros cineclubes era à vez. Sucedeu que apareceram mais candidatos do que bilhetes, e então, todas as noites, era organizada uma entrada com vista a enganar os porteiros, tentando-se encaixar todos os cineclubistas nos dois camarotes que nos foram atribuídos. Nunca percebi como foi possível durante tantos dias enganar aqueles profissionais, nem consigo perceber como tanta gente coube nos camarotes.
Outro aspecto, esse muito mais desconhecido, foi que a “malta” do CCUL influenciada, na altura, por um jovem português, que dizia que trabalhava no Piccolo Teatro di Milano e era amigo de alguém da Direcção, achava que se podia interferir com as decisões do júri ou então preparar o público para ver com outros olhos os filmes presentes no Festival. O que estava em causa é que no Festival ia ser exibido um filme que reflectia uma visão marxista da sociedade e que de modo muito coerente aplicava ao cinema os princípios brechtianos da distanciação. O filme era Salvatore Giuliano, em português O Bandido da Sicília, de Francesco Rosi. A história, em forma de inquérito, relatava o papel desempenhado por aquele bandido no contexto da máfia siciliana e do seu assassinato por aquela organização, nunca nos mostrando de frente o bandido, de modo a que nunca nos identificássemos com ele.
O filme a abater era o Fellini 8 ½, que hoje, passados tantos anos, sobrevive incólume ao desejo iconoclasta daqueles jovens.
Que nos propúnhamos fazer. Reuniram-se os cine clubistas de esquerda e as ideias foram mais que muitas. Desde o lançamento em plena exibição do filme de panfletos a reflectir as nossas posições, à distribuição de críticas à entrada da sala. Já se sabe que a primeira proposta foi desde logo abandonava. Dava, naquele tempo, para irmos parar à PIDE sem sabermos porquê. Foi decidido fazer-se um dépliant, com pequenas críticas a cada um dos filmes exibidos, em que se mostrava como O Bandido da Sicília era o filme que melhor “reflectia” a realidade italiana. Já se sabe, quando o papel ficou pronto já há muito que o Festival tinha acabado e penso que hoje ainda estamos a dever o dinheiro da sua impressão à tipografia que na altura se prestou a imprimi-lo.
No meio disto há um episódio caricato que relembro hoje, passados que já são mais de 40 anos sobre o assunto. Havia na Direcção dois responsáveis, um deles que depois desempenhou um cargo importante na reitoria da Universidade Clássica de Lisboa, que na altura, muito influenciados pelos novos tempos que vinham do Partido Comunista Italiano, propuseram ao grupo de jovens mais aguerridos que convidassem para discutir o tal documento os representantes do Cine Clube Católico, que nessa altura, participavam conjuntamente com os cineclubes de esquerda no já referido apoio ao Festival. Eu achei a ideia disparatada, não que eu não fosse sensível à unidade com os católicos, mas para um objectivo que tinha fins claramente de apoio a uma dada proposta estética, não tinha o mínimo sentido solicitarmos a participação dos católicos nesse projecto. Fui apodado de sectário e desconhecedor das novas realidades que percorriam a Europa. Obediente, e porque as minhas ideias não tiveram vencimento na Direcção, quando o grupo se reuniu propus aos católicos a sua participação na elaboração do tal dépliant. Já se sabe que polidamente recusaram.
Como manda o bom senso, que nestas coisas nem sempre prevalece, o filme que ganhou o Festival foi o Fellini, 8 ½. Nem os receios do Diniz Machado se concretizaram nem as preocupações sociais e políticas daqueles jovens se realizaram. Hoje, passados estes anos recordo a boa conversa que tive com Diniz Machado, a justa vitória do Fellini 8 ½, e a qualidade estética e social do filme de Rosi.

PS:. Fui consultar os meus arquivos e descubro que havia a concurso algumas das obras-primas do cinema italiano da época: Dois Irmãos, Dois Destinos (Cronaca familiare), de Valérico Zurlini, e A Noite, de Michelângelo Antonioni, e ainda do sueco Ingmar Bergman, Luz de Inverno. Eu fiz a crítica a um filme hoje desconhecido, O Apaixonado, de Pierre Étaix, para a Página de Cinema Plano, do Notícias da Amadora.

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