Para cumprir a promessa que fiz ao meu amigo Fernando Penim Redondo relativamente ao post que ele publicou sobre a entrevista que Immanuel Wallerstein (IW) concedeu ao Le Monde, aqui vai a apreciação prometida.
O Fernando afirma logo no início do seu post: “defendi e escrevi publicamente que os avanços tecnológicos, com destaque para as tecnologias com base digital, constituíam um desafio para o capitalismo e não eram o "balão de oxigénio" do sistema que muitos pensavam. Quando acrescentei que tais desenvolvimentos minavam fatalmente o assalariamento, relação identitária do capitalismo”.
Este texto vem na sequência de um livro que ele publicou, juntamente com Maria Rosa Redondo, Do Capitalismo para o Digitalismo, que, como era de prever de um casal de informáticos, já está na net. A edição impressa era de Dezembro de 2003, e a digital, em forma de blog, é de Julho de 2008. Nunca li o livro, confesso, mas já ouvi falar tanto sobre ele, que algumas ideias foram ficando. No fundo, podemos resumir o seu conteúdo, muito mais complexo, é evidente, ao parágrafo acima citado. Assim, as tecnologias com base digital seriam responsáveis pelo fim do capitalismo ao minarem fatalmente o assalariamento. A formação social capitalista terminaria em virtude duma alteração das relações de produção motivada (desaparecimento do assalariado) pela substituição de uma força produtiva, neste caso as máquinas, pela nova tecnologia digital.
É evidente que posso estar a simplificar e a resumir uma obra que não li e por esse motivo o Fernando achar que eu lhe deturpei o pensamento. Contudo, acho que no essencial reproduzi as suas ideias.
Ora bem, não é nada disto que diz IW. Recorrendo unicamente às citações da sua entrevista feitas pelo Fernando, vemos que o autor propõe o seguinte: “o que no fundamental distingue esta fase da sucessão ininterrupta dos ciclos conjunturais anteriores é que o capitalismo já não consegue “fazer sistema", no sentido do entendimento do físico e químico Ilya Prigogine (1917-2003): quando um sistema, biológico, químico ou social se desvia muitas vezes da sua situação de estabilidade, não consegue recuperar o equilíbrio, e o resultado foi uma bifurcação. A situação torna-se caótica, incontrolável pelas forças que até então a dominavam e assistimos ao surgimento de uma luta, não entre defensores e opositores do sistema, mas entre todos os intervenientes para determinar o que irá substitui-lo."
IW propõe-nos pois que o capitalismo poderá acabar porque, de acordo com as teorias do autor citado, o desvio em relação à sua situação de estabilidade é tão grande que não consegue recuperar o equilíbrio e, por isso, a situação poder-se-á tornar caótica. Ora o que o Fernando diz é que precisamos de saber o que é que causou essa ruptura, ou de acordo com a terminologia de IW, o que a tornou caótica. E o Fernando termina: “enquanto não compreendermos os mecanismos que actuaram para produzir esta ruptura, se ela existe, continuaremos a ter muita dificuldade em imaginar os desenvolvimentos futuros”. Ou seja, Fernando interroga-se sobre quais são os mecanismos de ruptura, que provavelmente associa ao desaparecimento do assalariado e ao desenvolvimento de uma formação social nova, que ele chama digitalismo. Para IW, como nos explicou ao longo da entrevista, esta ruptura com os ciclos curtos, que anteriormente se verificaram, deve-se ao próprio desenvolvimento do capitalismo, que por razões que lhe são intrínsecas não consegue voltar ao equilíbrio anterior.
Depois IW chega à conclusão mais importante: "acho que também é possível vermos instalar-se um sistema de exploração ainda mais violento do que o capitalismo, do que, pelo contrário, se criar um modelo mais igualitário e redistributivo." Não é capaz de prever o que virá a seguir à formação social capitalista e, pelo contrário, é muito pessimista sobre aquilo que o futuro nos reserva. Ao contrário do Fernando que prevê que a nova formação social é o digitalismo.
Por último, IW afirma, ainda de acordo com as transcrições do Fernando: “estamos num período, bastante raro, onde a crise e a impotência dos poderosos deixa um espaço ao livre arbítrio de cada um: há agora um período de tempo durante o qual todos teremos a oportunidade de influenciar o futuro para a nossa acção individual." Ao que Fernando responde a terminar, com as simplificações a que vulgarmente recorre: “considero imperioso que a esquerda assuma este desafio e deixe de considerar estas questões, como fez ao longo dos últimos decénios, como chinesices que só atrapalham a obtenção de mais dois deputados nas próximas eleições”.
Retorquindo ao Fernando, vou recorrer a uma nova citação do IW, esta agora publicada num artigo que escreveu para o jornal mexicano La Jornada, traduzida para a página do PC de B, Vermelho, e que poderão encontrar no site da Renovação Comunista: “podemos asseverar com confiança que o presente sistema não sobreviverá. O que não podemos prever é qual a nova ordem que será eleita para substitui-lo, porque esse será o resultado de uma infinidade de pressões individuais. Mais cedo ou mais tarde, um novo sistema instalar-se-á. Não será um sistema capitalista, mas pode ser algo muito pior (ainda mais polarizado e hierárquico) ou muito melhor (relativamente democrático e relativamente igualitário) que o dito sistema. Decidir o novo sistema é a luta política mundial mais importante de nossos tempos.”
As citações são longas e maçadoras, no entanto, e porque gosto de ater-me ao que verdadeiramente foi dito, de modo a não esfrangalhar, nem deturpar o pensamento dos autores, reproduzi esta última de IW, que repete de certo modo o que já estava dito na entrevista citada, mas acrescenta um ponto que me parece extremamente importante: “decidir o novo sistema é a luta política mundial mais importante de nossos tempos.” Ou seja, a esquerda tem que assumir um combate político, de modo a que o novo sistema não seja resolvido a favor de “algo muito pior (ainda mais polarizado e hierárquico)” e esse combate, por muito que custe ao Fernando, passa também pela conquista de mais dois deputados. É com o conjunto das lutas que empreendermos agora, sem sectarismo, mas com a vontade de agregar toda a esquerda, que poderemos resolver a crise do sistema a favor das forças progressistas.
Tem sido isto que me separa do meu amigo Fernando que sempre achou que a esquerda devia parar, para pensar, e que as lutas do quotidiano eram pequenas chinesices de quem não tinha perspectivas de futuro.
O Fernando afirma logo no início do seu post: “defendi e escrevi publicamente que os avanços tecnológicos, com destaque para as tecnologias com base digital, constituíam um desafio para o capitalismo e não eram o "balão de oxigénio" do sistema que muitos pensavam. Quando acrescentei que tais desenvolvimentos minavam fatalmente o assalariamento, relação identitária do capitalismo”.
Este texto vem na sequência de um livro que ele publicou, juntamente com Maria Rosa Redondo, Do Capitalismo para o Digitalismo, que, como era de prever de um casal de informáticos, já está na net. A edição impressa era de Dezembro de 2003, e a digital, em forma de blog, é de Julho de 2008. Nunca li o livro, confesso, mas já ouvi falar tanto sobre ele, que algumas ideias foram ficando. No fundo, podemos resumir o seu conteúdo, muito mais complexo, é evidente, ao parágrafo acima citado. Assim, as tecnologias com base digital seriam responsáveis pelo fim do capitalismo ao minarem fatalmente o assalariamento. A formação social capitalista terminaria em virtude duma alteração das relações de produção motivada (desaparecimento do assalariado) pela substituição de uma força produtiva, neste caso as máquinas, pela nova tecnologia digital.
É evidente que posso estar a simplificar e a resumir uma obra que não li e por esse motivo o Fernando achar que eu lhe deturpei o pensamento. Contudo, acho que no essencial reproduzi as suas ideias.
Ora bem, não é nada disto que diz IW. Recorrendo unicamente às citações da sua entrevista feitas pelo Fernando, vemos que o autor propõe o seguinte: “o que no fundamental distingue esta fase da sucessão ininterrupta dos ciclos conjunturais anteriores é que o capitalismo já não consegue “fazer sistema", no sentido do entendimento do físico e químico Ilya Prigogine (1917-2003): quando um sistema, biológico, químico ou social se desvia muitas vezes da sua situação de estabilidade, não consegue recuperar o equilíbrio, e o resultado foi uma bifurcação. A situação torna-se caótica, incontrolável pelas forças que até então a dominavam e assistimos ao surgimento de uma luta, não entre defensores e opositores do sistema, mas entre todos os intervenientes para determinar o que irá substitui-lo."
IW propõe-nos pois que o capitalismo poderá acabar porque, de acordo com as teorias do autor citado, o desvio em relação à sua situação de estabilidade é tão grande que não consegue recuperar o equilíbrio e, por isso, a situação poder-se-á tornar caótica. Ora o que o Fernando diz é que precisamos de saber o que é que causou essa ruptura, ou de acordo com a terminologia de IW, o que a tornou caótica. E o Fernando termina: “enquanto não compreendermos os mecanismos que actuaram para produzir esta ruptura, se ela existe, continuaremos a ter muita dificuldade em imaginar os desenvolvimentos futuros”. Ou seja, Fernando interroga-se sobre quais são os mecanismos de ruptura, que provavelmente associa ao desaparecimento do assalariado e ao desenvolvimento de uma formação social nova, que ele chama digitalismo. Para IW, como nos explicou ao longo da entrevista, esta ruptura com os ciclos curtos, que anteriormente se verificaram, deve-se ao próprio desenvolvimento do capitalismo, que por razões que lhe são intrínsecas não consegue voltar ao equilíbrio anterior.
Depois IW chega à conclusão mais importante: "acho que também é possível vermos instalar-se um sistema de exploração ainda mais violento do que o capitalismo, do que, pelo contrário, se criar um modelo mais igualitário e redistributivo." Não é capaz de prever o que virá a seguir à formação social capitalista e, pelo contrário, é muito pessimista sobre aquilo que o futuro nos reserva. Ao contrário do Fernando que prevê que a nova formação social é o digitalismo.
Por último, IW afirma, ainda de acordo com as transcrições do Fernando: “estamos num período, bastante raro, onde a crise e a impotência dos poderosos deixa um espaço ao livre arbítrio de cada um: há agora um período de tempo durante o qual todos teremos a oportunidade de influenciar o futuro para a nossa acção individual." Ao que Fernando responde a terminar, com as simplificações a que vulgarmente recorre: “considero imperioso que a esquerda assuma este desafio e deixe de considerar estas questões, como fez ao longo dos últimos decénios, como chinesices que só atrapalham a obtenção de mais dois deputados nas próximas eleições”.
Retorquindo ao Fernando, vou recorrer a uma nova citação do IW, esta agora publicada num artigo que escreveu para o jornal mexicano La Jornada, traduzida para a página do PC de B, Vermelho, e que poderão encontrar no site da Renovação Comunista: “podemos asseverar com confiança que o presente sistema não sobreviverá. O que não podemos prever é qual a nova ordem que será eleita para substitui-lo, porque esse será o resultado de uma infinidade de pressões individuais. Mais cedo ou mais tarde, um novo sistema instalar-se-á. Não será um sistema capitalista, mas pode ser algo muito pior (ainda mais polarizado e hierárquico) ou muito melhor (relativamente democrático e relativamente igualitário) que o dito sistema. Decidir o novo sistema é a luta política mundial mais importante de nossos tempos.”
As citações são longas e maçadoras, no entanto, e porque gosto de ater-me ao que verdadeiramente foi dito, de modo a não esfrangalhar, nem deturpar o pensamento dos autores, reproduzi esta última de IW, que repete de certo modo o que já estava dito na entrevista citada, mas acrescenta um ponto que me parece extremamente importante: “decidir o novo sistema é a luta política mundial mais importante de nossos tempos.” Ou seja, a esquerda tem que assumir um combate político, de modo a que o novo sistema não seja resolvido a favor de “algo muito pior (ainda mais polarizado e hierárquico)” e esse combate, por muito que custe ao Fernando, passa também pela conquista de mais dois deputados. É com o conjunto das lutas que empreendermos agora, sem sectarismo, mas com a vontade de agregar toda a esquerda, que poderemos resolver a crise do sistema a favor das forças progressistas.
Tem sido isto que me separa do meu amigo Fernando que sempre achou que a esquerda devia parar, para pensar, e que as lutas do quotidiano eram pequenas chinesices de quem não tinha perspectivas de futuro.
2 comentários:
Amigo Jorge,
a promessa está cumprida e só não o foi com distinção por confessares que ainda não leste o "Digitalismo". No fundo acabaste por me dar razão: o tema não tem interessado as pessoas suficientemente.
Quanto ao livro penso que é útil esclarecer que é composto por várias vertentes interligadas:
1. A caracterização da fase actual do capitalismo, com a sua automatização e virtualização.
2. Transformação do papel e significado do trabalho no processo produtivo e crise do assalariamento.
3. Argumantação cerca do carácter
radical da crise do capitalismo e pistas sobre uma nova plataforma social possível, mesmo que transitória.
4. Confronto de todas estas questões como o quadro de referência do marxismo constatando incompatibilidades ou coincidências.
Voltando agora a atenção para o Wallerstein, e as nossas diferenças.
Dizer que "o capitalismo está a acabar porque já não consegue “fazer sistema" é o mesmo que dizer que o doente tem muita febre porque está muito quente.
Ele afirma que "o doente tem muita febre" e eu estou a tentar perceber de que vírus padece.
Neste caso não para atacar o vírus mas para o ajudar.
Quanto ao que vai suceder depois do capitalismo eu tenho uma posição igual à do Wallerstein quando diz que o que aí vem pode até ser pior. A referência ao digitalismo foi usado por mim em vários sentidos: mostrar que há outras formas que a sociedade pode adoptar e levantar a questão de haver um período de transição que, não sendo ainda a solução duradoura, reflicta as brutais transformações tecnológicas.
Eu vejo o digitalismo como uma espécie de compasso de espera enquanto a humanidade não encontra um rumo duradoiro.
Penso que nunca te conseguirei tirar da cabeça algumas ideias:
- que eu quero substituir as pessoas por computadores
- que eu quero que toda a actividade política pare para pensar (de vez em quando parar um pouco e usar o cérebro era capaz de não ser má ideia)
Para finalizar: tenho andado a ler o Wallerstein, que admiro, e dentro em breve talvez faça um post sobre a maneira como ele explica a decadência do capitalismo (que eu acho insuficiente).
Um abraço Jorge
Caro Fernando
A explanação do teu livro é da tua responsabilidade e ainda bem que o fizeste.
Quanto ao Wallerstein parece que simplificas, por que ele, tal como digo no meu texto, vai ao logo de toda a entrevista tentando explicar que é por causas intrínsecas que o capitalismo está a chegar ao fim. Quanto ao conceito de “fazer sistema”, parece-me que apesar de dar umas pistas na sua entrevista, deve tê-lo explanado melhor noutros textos. Mas, se lermos toda a informação que presentemente circula na Internet, e de que se encontra eco no site da Renovação Comunista, principalmente o belo trabalho “Tudo o que você quer saber sobre a origem da crise e teme não entender”, do filipino Walden Bello, percebe que a incapacidade de maior expansão capitalistas está na origem desta crise.
Quanto às ideias que pensas que não me consegues tirar, penso que na primeira erraste completamente. Nunca pensei isso, nem nunca o escrevi.
Quanto à segunda, tenho a ideia que não ando muito longe da verdade, mas para mim o mais importante é a possibilidade de conjugar a prática política quotidiana, que muitas vezes passa pela conquista de mais dois lugares no Parlamento, com os objectivos finais, que é substituir o capitalismo por uma sociedade mais distributiva e igualitária.
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