Finalmente fui ver Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes, e a minha antiga veia de crítico de cinema regressou.
Comecemos primeiro pela região onde se desenrola o filme.
Por motivos familiares conheço bem aquela região, costumo ir para uma aldeia situada na parte leste do concelho de Arganil e o filme passa-se principalmente, em Coja e zonas limítrofes, situadas a nordeste daquele concelho. Fiz já algumas vezes o percurso que começa em Coja, passa pela Fraga da Pena, onde o tio que veio da França tira algumas fotografias com a família, e que é referida como sendo um lugar muito fresco na conversa entre os dois actores. É de facto um sítio encantador, onde se encontram fragas e cascatas de água. Depois pode-se seguir para a Mata da Margaraça, situada na Paisagem Protegida da Serra do Açor. A importância da Mata, que no filme é mostrada com o nome das árvores que a povoam, resulta do seu coberto vegetal ser o originário daquela zona das Beiras, que progressivamente tem sido substituído por plantações de pinheiros, eucaliptos e acácias. A sede da Paisagem Protegida situa-se na Mata, numa casa recentemente reconstituída onde se manteve a traça original. Pareceu-me que algumas cenas do filme foram lá filmadas ou então noutra, também reaproveitada, situada um pouco mais abaixo.
Depois segue-se a imensa Serra do Açor, onde se desenrola grande parte do filme, e por onde se pode chegar à aldeia de Piódão, uma pequena maravilha, ainda preservada, com as casa todas elas em xisto e com telhados negros de ardósia.
Ao contrário do que diz o meu amigo Fernando Penim Redondo as casas da região, que ainda conservam a construção original, são de xisto e não de granito.
A partir daí pode-se descer para Aldeia das Dez, já no concelho de Oliveira do Hospital, onde se encontra o santuário da Senhora das Preces, local onde se realiza todos os anos uma festa religiosa importante.
Passemos agora à paisagem humana. As interpretações dos críticos sobre o povo que habita o filme podem resumir-se a duas. Uns, consideram que as imagens daquelas aldeias são semelhantes às das reservas de índios, que de vez em quando devemos visitar, como sucede com a Aldeia dos Macacos que regularmente vemos no Jardim Zoológico. Outros, recorrendo à metáfora da Cidade e das Serras, de Eça de Queiroz, consideram que está ali o Portugal profundo, opondo-o aos blasés da cidade, limitados ao estreito mundo dos seus pequenos blogs.
A todos eles eu gostaria de perguntar: será que são as excursões dos habitantes das Beiras que enchem o Pavilhão Atlântico, no Parque das Nações, quando o Tony Carreira lá canta? Não serão os nossos vizinhos aqui dos arredores de Lisboa, ou mesmo da cidade, que o enchem?
No filme é mostrado um camponês aí na casa dos 60 anos que tinha visto o seu vizinho matar a mulher à machadada. Todos ficámos impressionados com a descrição e a falta de emoções do protagonista. No entanto, muito provavelmente a neta daquele homem já tem uma licenciatura, ocupa um lugar no banco ou numa companhia de seguros em Coimbra ou na sede do Concelho ou ensina numa escola da região e provavelmente consulta a Internet e os blogs. No Algarve, na Manta Rota, que conheço bem, o neto de um antigo pescador deu-me recentemente os parabéns pelo meu blog. É evidente que o Algarve foi civilizado à força. Mas, na pequena aldeia da Beira que refiro, já há algumas casas com piscina, coisa impensável há uns anos atrás, e meninas que se passeiam em roupão de banho pela aldeia naquele querido mês de Agosto. As mães já tinham emigrado para Lisboa ou para França onde, com alguma sorte e muito trabalho, tinham conseguido bons empregos ou amealhado algum dinheiro e as filhas já “doutoras” ou filhos “arquitectos”, como no filme, ou a estudar para isso, lá frequentam a festa da aldeia e dançam ao som de bandas semelhantes às que nos são mostradas no ecrã.
Mas mais ainda, quando uma velhota diz no filme que tem a voz entaramelada porque teve um AVC, pergunto-me: se este facto tivesse ocorrido há 20 ou 30 anos, a mulher saberia o que tinha tido e salvar-se-ia com a mesma facilidade? Hoje, de um modo geral, uma ambulância do INEM chega a uma aldeia do interior a tempo de salvar uma vida.
E que dizer da luz eléctrica que não terá mais de 40 anos ou das estradas alcatroadas que não têm mais de 20,vá lá 30 anos.
Tudo isto para mostrar que nós somos os filhos ou os netos deste nosso povo, deste Portugal que em 30 anos se modificou, penso que para muito melhor, e se hoje olhamos enfastiados para o nosso passado é porque já não nos lembramos das berças donde todos viemos. Exceptuando aqueles que, bem nascidos, sempre tiveram lugar à mesa da Nobreza ou da Igreja.
Por isso, parece extremamente bem feita a descrição deste “nosso” Portugal.
Entrando na apreciação propriamente do filme, aquilo que menos me agradou foi a existência de dois registos: o documental e a ficção. Bem podem alguns críticos citar Godard para justificar a sua interpenetração. Apesar da passagem de um ao outro estar bem dada. O melhor exemplo é o do tio da rapariga que começa em “off” a falar durante a procissão, parecendo ao espectador que era o relato verídico de mais um caso de aldeia, e acaba integrado na história ficcionada. Ou então, o oposto, a manutenção dentro do quadro documental da figura do Moleiro do Rio, que todos os anos pelo Carnaval se atira para o rio Alva.
O filme poderia ser um belo documentário sobre a região e a frustração de uma equipa de cinema que não consegue realizar o filme a que se propunha, no entanto, entendeu o autor passar à ficção e integrar numa história as personagens que já nos vinha apresentando. Contudo, a sua ficção, ao resumir-se à hora final, faz com que as personagens tenham pouca espessura e acima de tudo permite que aquela descambe para o drama de “faca e alguidar”, quando estabelece a relação amorosa entre o pai, a filha e o sobrinho. Por isso entendo que se perdeu um belo documentário sobre uma operação falhada de filmagens e se ganhou pouco com uma história de ficção.
Resta ainda, e não sei se foi essa a preocupação do autor, a desconstrução do próprio filme, muito em voga nos anos 60 do século passado. A passagem dos actores de personagens que povoam o documentário a intérpretes de ficção, a cena da procura de actores para o filme, com o gag do jogo da malha pelo meio, ou o final, com o genérico a correr, em que o realizador interpela o director de som porque este captara sons que lá não estavam, tem a finalidade, penso eu, de chamar a atenção para o facto de estarmos perante um filme, em que tudo é representação e reconstrução da realidade. No entanto como o registo inicial era documental nunca haveria o perigo de nos identificarmos com as personagens, nem nos deixarmos arrastar pelo drama amoroso. Quando Bergman, em Persona (A Máscara), recorreu a esse subterfúgio, ele tinha coisas importantes a dizer e chamava a atenção para que aquilo que mostrava era cinema e não a vida. Mas nem todos podem ser Bergmans.
No entanto, recomendo vivamente a visão de Aquele Querido Mês de Agosto, mas gostaria que o tom de comiseração para com aquela "pobre gente" fosse de vez abandonado, porque ela não o merece.
Comecemos primeiro pela região onde se desenrola o filme.
Por motivos familiares conheço bem aquela região, costumo ir para uma aldeia situada na parte leste do concelho de Arganil e o filme passa-se principalmente, em Coja e zonas limítrofes, situadas a nordeste daquele concelho. Fiz já algumas vezes o percurso que começa em Coja, passa pela Fraga da Pena, onde o tio que veio da França tira algumas fotografias com a família, e que é referida como sendo um lugar muito fresco na conversa entre os dois actores. É de facto um sítio encantador, onde se encontram fragas e cascatas de água. Depois pode-se seguir para a Mata da Margaraça, situada na Paisagem Protegida da Serra do Açor. A importância da Mata, que no filme é mostrada com o nome das árvores que a povoam, resulta do seu coberto vegetal ser o originário daquela zona das Beiras, que progressivamente tem sido substituído por plantações de pinheiros, eucaliptos e acácias. A sede da Paisagem Protegida situa-se na Mata, numa casa recentemente reconstituída onde se manteve a traça original. Pareceu-me que algumas cenas do filme foram lá filmadas ou então noutra, também reaproveitada, situada um pouco mais abaixo.
Depois segue-se a imensa Serra do Açor, onde se desenrola grande parte do filme, e por onde se pode chegar à aldeia de Piódão, uma pequena maravilha, ainda preservada, com as casa todas elas em xisto e com telhados negros de ardósia.
Ao contrário do que diz o meu amigo Fernando Penim Redondo as casas da região, que ainda conservam a construção original, são de xisto e não de granito.
A partir daí pode-se descer para Aldeia das Dez, já no concelho de Oliveira do Hospital, onde se encontra o santuário da Senhora das Preces, local onde se realiza todos os anos uma festa religiosa importante.
Passemos agora à paisagem humana. As interpretações dos críticos sobre o povo que habita o filme podem resumir-se a duas. Uns, consideram que as imagens daquelas aldeias são semelhantes às das reservas de índios, que de vez em quando devemos visitar, como sucede com a Aldeia dos Macacos que regularmente vemos no Jardim Zoológico. Outros, recorrendo à metáfora da Cidade e das Serras, de Eça de Queiroz, consideram que está ali o Portugal profundo, opondo-o aos blasés da cidade, limitados ao estreito mundo dos seus pequenos blogs.
A todos eles eu gostaria de perguntar: será que são as excursões dos habitantes das Beiras que enchem o Pavilhão Atlântico, no Parque das Nações, quando o Tony Carreira lá canta? Não serão os nossos vizinhos aqui dos arredores de Lisboa, ou mesmo da cidade, que o enchem?
No filme é mostrado um camponês aí na casa dos 60 anos que tinha visto o seu vizinho matar a mulher à machadada. Todos ficámos impressionados com a descrição e a falta de emoções do protagonista. No entanto, muito provavelmente a neta daquele homem já tem uma licenciatura, ocupa um lugar no banco ou numa companhia de seguros em Coimbra ou na sede do Concelho ou ensina numa escola da região e provavelmente consulta a Internet e os blogs. No Algarve, na Manta Rota, que conheço bem, o neto de um antigo pescador deu-me recentemente os parabéns pelo meu blog. É evidente que o Algarve foi civilizado à força. Mas, na pequena aldeia da Beira que refiro, já há algumas casas com piscina, coisa impensável há uns anos atrás, e meninas que se passeiam em roupão de banho pela aldeia naquele querido mês de Agosto. As mães já tinham emigrado para Lisboa ou para França onde, com alguma sorte e muito trabalho, tinham conseguido bons empregos ou amealhado algum dinheiro e as filhas já “doutoras” ou filhos “arquitectos”, como no filme, ou a estudar para isso, lá frequentam a festa da aldeia e dançam ao som de bandas semelhantes às que nos são mostradas no ecrã.
Mas mais ainda, quando uma velhota diz no filme que tem a voz entaramelada porque teve um AVC, pergunto-me: se este facto tivesse ocorrido há 20 ou 30 anos, a mulher saberia o que tinha tido e salvar-se-ia com a mesma facilidade? Hoje, de um modo geral, uma ambulância do INEM chega a uma aldeia do interior a tempo de salvar uma vida.
E que dizer da luz eléctrica que não terá mais de 40 anos ou das estradas alcatroadas que não têm mais de 20,vá lá 30 anos.
Tudo isto para mostrar que nós somos os filhos ou os netos deste nosso povo, deste Portugal que em 30 anos se modificou, penso que para muito melhor, e se hoje olhamos enfastiados para o nosso passado é porque já não nos lembramos das berças donde todos viemos. Exceptuando aqueles que, bem nascidos, sempre tiveram lugar à mesa da Nobreza ou da Igreja.
Por isso, parece extremamente bem feita a descrição deste “nosso” Portugal.
Entrando na apreciação propriamente do filme, aquilo que menos me agradou foi a existência de dois registos: o documental e a ficção. Bem podem alguns críticos citar Godard para justificar a sua interpenetração. Apesar da passagem de um ao outro estar bem dada. O melhor exemplo é o do tio da rapariga que começa em “off” a falar durante a procissão, parecendo ao espectador que era o relato verídico de mais um caso de aldeia, e acaba integrado na história ficcionada. Ou então, o oposto, a manutenção dentro do quadro documental da figura do Moleiro do Rio, que todos os anos pelo Carnaval se atira para o rio Alva.
O filme poderia ser um belo documentário sobre a região e a frustração de uma equipa de cinema que não consegue realizar o filme a que se propunha, no entanto, entendeu o autor passar à ficção e integrar numa história as personagens que já nos vinha apresentando. Contudo, a sua ficção, ao resumir-se à hora final, faz com que as personagens tenham pouca espessura e acima de tudo permite que aquela descambe para o drama de “faca e alguidar”, quando estabelece a relação amorosa entre o pai, a filha e o sobrinho. Por isso entendo que se perdeu um belo documentário sobre uma operação falhada de filmagens e se ganhou pouco com uma história de ficção.
Resta ainda, e não sei se foi essa a preocupação do autor, a desconstrução do próprio filme, muito em voga nos anos 60 do século passado. A passagem dos actores de personagens que povoam o documentário a intérpretes de ficção, a cena da procura de actores para o filme, com o gag do jogo da malha pelo meio, ou o final, com o genérico a correr, em que o realizador interpela o director de som porque este captara sons que lá não estavam, tem a finalidade, penso eu, de chamar a atenção para o facto de estarmos perante um filme, em que tudo é representação e reconstrução da realidade. No entanto como o registo inicial era documental nunca haveria o perigo de nos identificarmos com as personagens, nem nos deixarmos arrastar pelo drama amoroso. Quando Bergman, em Persona (A Máscara), recorreu a esse subterfúgio, ele tinha coisas importantes a dizer e chamava a atenção para que aquilo que mostrava era cinema e não a vida. Mas nem todos podem ser Bergmans.
No entanto, recomendo vivamente a visão de Aquele Querido Mês de Agosto, mas gostaria que o tom de comiseração para com aquela "pobre gente" fosse de vez abandonado, porque ela não o merece.
2 comentários:
Ainda bem que regressou a tua veia de crítico, mas eu bem gostaria que tivesses visto o filme do Canijo, "Mal nascida", e aqui desses a tua opinião. Fui ontem vê-lo e gostava de confrontar a minha visão do filme com alguém que tenha melhor poder de apreciação do que eu. Ás vezes os filmes são classificados com grandes discrepâncias mas neste caso, há uma certa unanimidade com a qual eu concordo, por isso eu gostaria de saber a tua opinião.Um beijo para os dois.
M.Júlia
Se não fossem as amigas não tinha ninguém a comentar os meus posts. Obrigado pelo comentário. Mas ainda não vi esse filme do Canijo. Se o for ver prometo uma crítica.
Abraços e beijos para os dois.
Jorge
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