09/07/2010

Álvaro Cunhal, sete fôlegos do combatente.


Fui ao lançamento do livro de Carlos Brito, Álvaro Cunhal, sete fôlegos do combatente. Memórias, das Edições Nelson de Matos, que teve lugar em Lisboa. Podemos dizer que estavam lá todas aquelas categorias de cidadãos, que José Neves, num texto cheio de graça, publicou no Vias de Facto, Os seres humanos em geral e o PCP em Particular. Já se sabe que algumas categorias mais reaccionárias não estavam lá, nem os ortodoxos mais empedernidos e penso que o José Neves também não.
O livro foi apresentado pelo editor, que devido a eu estar muito mais velho já quase não me reconhecia, quando fomos amigos de juventude, pelo Manuel Alegre, que fez um discurso de circunstância, para não se comprometer com nenhuma das partes que o apoia para presidente da República, e pelo António Borges Coelho, que aos oitenta e tal anos começou a publicar uma história de Portugal em vários volumes. Valente historiador e cidadão, que, com grande clareza de raciocínio, não se eximiu de referir, citando o próprio Brito, quando Mário Soares se refugiou no Porto, no 25 de Novembro de 74 e pensava marchar à frente de toda a reacção contra a Comuna de Lisboa. No final, José Manuel Mendes leu textos do livro.
Sei que este lançamento se passou há mais de um mês, que já foi referido por toda a imprensa, mas não quis deixar de dar testemunho sobre o mesmo.

Quando fui ao evento já tinha lido o livro. Lê-se de uma penada. Hoje para vos fazer esta crítica reli quase metade do mesmo e continuo a percorrer com prazer as suas histórias e evocações. Para quem viveu aqueles acontecimentos no PCP, é um pouco a nossa vida que é passada em revista. Por isso recomendo-vos vivamente a sua leitura, que não perdem o vosso tempo.
O livro, ao contrário de outros, cujos autores deixaram o PCP, não é nenhum ajuste de contas com o passado e muito menos com Cunhal. É mesmo bastante elogioso para a personagem, simplesmente não tem aquele carácter litúrgico que os ortodoxos gostam de imprimir a tudo aquilo que escrevem sobre o “venerando” Secretário-geral. Não há grandes revelações. A não ser aquela que foi glosada até ao infinito a quando da morte de José Saramago, de Álvaro ter dito, quando foi preciso escolher um director para O Diário, que Saramago era um esquerdista. Depois disso muita coisa mudou e as relações entre os dois melhoraram bastante.
Podemos dizer que mesmo em relação ao 25 de Novembro, e à época que antecedeu aquela data, há um grande pudor no tratamento do assunto. Eu penso que as coisas foram um bocadinho mais complicadas do que aquilo que descreve Carlos Brito. Mas considero que este livro não é uma história dos acontecimentos, mas sim as memórias do período em que Álvaro Cunhal e Carlos Brito se relacionaram.
O mais importante de toda a descrição é a enumeração daquilo que Carlos Brito considere os sete fôlegos de Cunhal, ou seja, as suas principais contribuições teóricas e a sua tradução prática na linha do Partido.

Desconhecendo eu este trabalho de Brito, elaborei há já algum tempo dois posts onde de certo modo abordo igualmente alguns dos aspectos teóricos desenvolvidos no livro. O meu texto tinha por título: O PCP, a Revolução Democrática e Nacional e o rumo ao socialismo – Algumas contribuições para a caracterização do 25 de Abril. Parte I e II (ver aqui e aqui) Na altura Brito leu-os, teve o pudor de não fazer grandes comentários, mas informou-me que estava a preparar as suas memórias que abrangiam o período referidos nos meus textos.

Para Brito o primeiro grande fôlego da Álvaro Cunhal foi sem dúvida o Rumo à Vitória, de 1964, onde era plasmada a situação política portuguesa e as tarefas indispensáveis para o derrube do fascismo e a proposta da Revolução Democrática e Nacional como tarefa central a realizar a seguir à queda do fascismo. Brito afirma mesmo: “O eixo ideológico central do Rumo à Vitória é a Revolução Democrática e Nacional, uma criação teórica a que Álvaro Cunhal chegou depois de profundo estudo sobre a realidade do país, que lhe permitiu fixar a etapa da revolução portuguesa e as respectivas tarefas no processo mundial”.
Concordando eu no essencial com a afirmação anterior não quero no entanto deixar de citar, a partir de Brito, este texto de Cunhal, de 43. “Nós tornamos bem claro que sempre fomos e continuamos sendo pelo Poder Soviético. Mas as condições não estão maduras para a Revolução Proletária. Todas as energias e todas as forças se devem unir no momento presente para bater o inimigo comum – o fascismo”.
Faço esta citação porque no texto por mim elaborado apresento a Revolução Democrática e Nacional não como uma novidade teórica, mas como a tradução para Portugal, neste caso com alguma originalidade e bastante entrosamento nacional, das propostas apresentadas pela Internacional Comunista, a partir do seu VII Congresso (1935) e depois pelo movimento comunista internacional, durante e no pós II Guerra Mundial, que consistiam na criação de etapas intermédias que ou visavam a defesa contra o fascismo (é o caso das Frentes Populares) ou o derrube do mesmo e a sua substituição por um estado intermédio. E isto é tanta verdade, que em 1943 Álvaro Cunhal no seu informe ao III Congresso do PCP, para justificar esta nova orientação, então ainda recente, utiliza as expressões que Brito transcreve.
Gostaria aqui só de lembrar, a título de exemplo, que enquanto a Internacional Comunista na sua fase esquerdista, já por mim aqui referida, preconizava para Itália a revolução socialista e recusava a colaboração com as forças liberais e sociais-democratas, então denominadas de sociais-fascistas, Gramsci na prisão defendia a convocação de um Assembleia Constituinte. Parecendo que isto nada tem a ver como o tema que estamos a tratar, parece-me a mim ser extremamente importante, pois que o PCP actual, um pouco na linha dos esquerdistas dos anos 60 e 70, esquece as formulações da Revolução Democrática e Nacional e começa a refugiar-se, pelo menos no campo das palavras, num revolucionarismo, que eu diria, de pacotilha. Este assunto já foi por mim abordado diversas vezes (ver aqui e aqui).

Quais foram os outros fôlegos de Cunhal sublinhados por Brito. O segundo, que eu não dei particular importância no meu texto, foi a sua contribuição para o VII Congresso extraordinário do PCP, realizado em Outubro de 1974, que para além da supressão do termo ditadura do proletariado do seu programa, propõe um Plataforma de Emergência, de que eu já não me recordava, e que era muito mais recuada do as propostas avançadas na Revolução Democrática e Nacional. À luz da flexibilidade táctica de Cunhal compreende-se muito bem esta ideia.
O terceiro fôlego é aquele que resulta do golpe falhado do 11 de Março, que faz avançar o processo revolucionário a toda a força. Estas são páginas empolgantes de Brito a propósito da actividade aí desenvolvida por Cunhal. Estavam-se a concretizar todas as propostas da Revolução Democrática e Nacional (RDeN), com as nacionalizações e o começo da reforma agrária, Cunhal por isso resolveu acrescentar àquela revolução a expressão a caminho do socialismo. E a partir daí desenvolve toda uma teoria que Brito critica, e bem, de que em Portugal não podia vencer uma democracia burguesa, tipo ocidental. Assim, ou a RDeN derrubava os monopólios e então era possível alcançar a democracia, ou estes só sobreviviam num regime de ditadura. Como se veio a verificar depois do 25 de Novembro, e principalmente depois da revisão constitucional que acabou com as principais nacionalizações é possível num regime capitalista monopolista conviver com a democracia burguesa. Foi um erro de previsão de Cunhal, que Brito sublinha.

Há também no livro de Brito um aspecto, que eu dou bastante importância no meu texto, que é a pesada derrota que o PCP sofreu nas eleições para a Assembleia Constituinte. Brito considera que o avanço da contra revolução no Verão Quente de 1975 e as posições assumidas pelos militares moderados têm todas elas a ver com o resultado daquelas eleições, que dificultou que certos sectores do MFA continuassem a apoiar o vanguardismo da esquerda militar e do PCP, quando o seu resultado eleitoral não passou dos 12,5%. Eu próprio no meu texto remeto para os valores que outros partidos comunistas, como o francês e o italiano tinham obtido em eleições para a Constituinte depois da II Guerra Mundial, que eram sem dúvida muito superiores ao nosso, como para os resultados dos próprios bolcheviques na efémera Assembleia Constituinte da Rússia de então.

Em resposta à situação de crise que se verificou no Verão de 75, realiza-se a 10 de Agosto uma reunião do Comité Central em Alhandra, onde Cunhal prenunciou um discurso que para Brito constituiu o seu quarto fôlego. Para evitar que o PCP fosse encostado ao muro era necessário negociar com todas as forças que de certo modo estavam ou eram do MFA, principalmente com o Grupo dos Nove que tinham acabado de publicar um manifesto muito crítico da esquerda militar e da acção de Vasco Gonçalves. Brito dá grande importância a este discurso e a esta reunião, considerando-a fundamental para a compreensão de tudo aquilo que veio a seguir e até, podemos dizê-lo, à passagem do PCP sem grandes estragos pelo 25 de Novembro. Estando no essencial de acordo com esta ideia, parece-me, no entanto, que o que ficará para a história não foi a vontade do PCP em negociar, mas a constante cavalgada dos acontecimentos que se foram produzindo a partir da formação do Governo de Pinheiro de Azevedo, o VI Governo Provisório. O próprio Brito conta o episódio em que participou da formação da FUP, uma união entre o PCP o MDP e algumas formações esquerdistas que só durou um dia, pois quando Álvaro Cunhal soube do assunto achou que era melhor o PCP retirar-se daquela organização. Mas não esquece igualmente a formação dos SUV, Soldados Unidos Vencerão, e até o próprio cerco da Assembleia Constituinte pelos operários da construção civil. É neste sentido, que sendo de valorizar as propostas de negociação apresentadas por Cunhal naquela importantíssima reunião do Comité Central, temos que na prática o PCP foi arrastado pelo torvelinho constante das acções esquerdistas. Por outro lado, a imagem que ao longo dos anos se tentou mostrar deste período foi sempre de um constante desgoverno, caracterizado ou pela cara tapada dos SUV ou pela saída de punho erguido dos deputados do PCP depois do cerco à Assembleia ter terminado ou pelo juramento do RALIS de punho no ar e para o qual o PCP em nada contribuiu. É por estas razões que ainda hoje o 25 de Novembro apresenta grandes áreas nebulosas e que acarretam múltiplas interpretações. Nesse aspecto Carlos Brito dá alguma contributo para o seu esclarecimento, mas não o faz, quanto mim, de modo definitivo.

Para Brito o quinto fôlego de Álvaro Cunhal foi a importância que este deu a partir do 25 de Novembro ao texto constitucional que viria a ser aprovado a 2 de Abril de 1976.
Aquele dirigente, como de outros dos partidos à direita, porque andaram arredados do trabalho dos constituintes, desconhecia o conteúdo do mesmo. Para Álvaro Cunhal foi uma agradável surpresa e partir daí passou a ser o seu maior defensor. Servindo-se do seu conteúdo, em que a expressão a caminho do socialismo estava incluída, Álvaro Cunhal muitas vezes repetiu que a Revolução Portuguesa caminhava para o socialismo. Brito glosa um pouco este tema, afirmando que Cunhal o fazia no sentido de defender o texto constitucional. No meu texto considero que foi um erro ou pelo menos uma grande ilusão continuar-se a definir a revolução portuguesa a caminho do socialismo depois da derrota do 25 de Novembro. Criou grandes ilusões nas massas e não favoreceu em nada a defesa e a compreensão das novas condições de actuação em regime democrático. Brito não foge ao tema e dá-lhe também o devido enquadramento.


Por último, temos o sexto e o sétimo fôlego. O sexto refere-se àquele espaço vazio que Álvaro descortinava na vida política portuguesa e que ele pensava preencher com o partido eanista. Hoje sabe-se que foi um erro e que o seu aparecimento desorganizou os resultados eleitorais subsequentes, permitindo no final as maiorias absolutas de Cavaco e uma diminuição acentuada dos votos no PCP. O sétimo foi a proposta de aprovação de um novo programa do Partido, Por uma Democracia Avançada no limiar do Século XXI, a que Brito dá grande importância, mas que no momento em que surgiu, Dezembro de 1988, no XII Congresso, passou desapercebido tanto no Partido, como na opinião pública.

Feita a esta descrição muito reduzida nos dois últimos fôlegos, Brito passa depois aos últimos anos de Cunhal e à contestação que deu origem à Renovação Comunista. Como em alguns episódios estive envolvido, sendo inclusive citado pelo próprio Brito, como muitos outros camaradas da Renovação, deixarei para momento mais oportuno esta apreciação. Sei que alguns dos actuais membros do PCP já começaram a bichanar, ainda que eu tivesse reparado não directamente. Da parte do Partido, que eu saiba, não houve ainda qualquer reacção oficial. É difícil tal é o bem fundamentado das apreciações de Brito. Termino pois com uma recomendação de leitura.

5 comentários:

Anónimo disse...

Também li o livro e concordo muito com a tua apreciação.

Tudo bem contigo?

bjs, Margarida Moreira

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Agradeço o comentário, mas não estou a ver quem és. Dá-me qualquer pista.
Jorg

Jorge Nascimento Fernandes disse...

De repente esqueci-me que eras Margarida Trocado Moreira.
Desculpa
Beijos
Jorge

packard disse...

Vim aqui à procura da referência do Borges Coelho sobre o Soares e a "comuna de Lisboa", e deliciei-me com a imensa qualidade deste teu texto.

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Nos post mais antigos tenho moderação dos comentários, já que há possibilidades do spam atacar. Mas o teu comentário já está publicado. Obrigado pelo que dizes.
Um abraço