12/09/2008

A memória dos textos


Joana Lopes publicou no seu blog, Entre as Brumas da memória , e em os Caminho da Memória , site mais ou menos afecto ao Movimento Não Apaguem a Memória, um documento que ela chama O grupo dos 16, porque foram 16 o número de militantes da Comissão Democrática Eleitoral (CDE) a assiná-lo, mas que no original tem o título de Porque saímos da CDE. O documento é de Julho de 1973, segundo percebi, e reflecte as razões porque diversos militantes abandonaram aquela Comissão, que antes do 25 de Abril agrupava as principais correntes políticas de oposição ao fascismo (naquela altura PCP e PS).
Por essa época estava eu quase a sair da tropa e não militava na CDE. Estava mesmo politicamente pouco activo. Tinha participado em 1969 numa das estruturas daquela Comissão, mas posteriormente a minha actividade resumiu-se à participação na organização clandestina do PCP para o exército. Recordo que foi o Barros Moura, já falecido, que estava na altura também a cumprir o serviço militar, e que eu não sabia quem era, que entrou em contacto comigo e me levou ao funcionário que era responsável por aquela estrutura na região de Lisboa.
Recordo-me, mas muito vagamente, de alguém ter dito que a Isabel do Carmo e o seu grupo tinham abandonado a CDE. Mas esta recordação é vaga e portanto, pouco precisa.
Mas o que me interessa sublinhar, não são estas memórias desconexas, sobre um tempo que já passou há muito. O importante é o texto do comunicado.
Recentemente publiquei um texto sobre O PCP, a revolução democrática e nacional e o rumo ao socialismo – Algumas contribuições para a caracterização do 25 de Abril (ver aqui e aqui ). Estes posts, que pouca gente leu e não foram discutidos, exceptuando aqui , referiam-se a alguns dos temas abordados naquele comunicado, que estavam relacionados com os objectivos que se pretendiam alcançar com a alteração da situação política em Portugal.
Se virem os três pontos que Joana Lopes transcreveu do comunicado verificam que eles são centrais nas opções políticas então discutidas:
«Não devemos criar a ilusão de que o capitalismo, sem a sua forma fascista, é menos capitalismo, é menos explorador.»
«E que significaria acabar com os monopólios e continuarem os pequenos e médios comerciantes e industriais? Como patrões que são, como burguesia que são, instalar-se-iam no poder e transformariam a sociedade a seu modo. E apesar de serem pequenos ou médios exploram menos, pagam melhor? Que diferença sente um trabalhador ao ser explorado por um pequeno, um médio ou um grande burguês?»
«Mas pôr como objectivo as liberdades – de expressão, de associação sindical, etc. – é pôr como objectivo uma sociedade democrática burguesa onde não pareceria haver censura, onde as pessoas se poderiam reunir e organizar “livremente”, onde os trabalhadores teriam sindicatos para defenderem os seus interesses, mas onde tudo se passaria com o capitalismo no poder.»
O que é que se criticava no comunicado? A unidade antifascista proposta pela CDE opondo-a à unidade pelo socialismo; a luta antimonopolistas em contraposição à luta anticapitalista – é espantoso que ainda no discurso de encerramento da Festa do Avante, Jerónimo de Sousa faça referência aos “interesses e aspirações de todas as classes e camadas sociais antimonopolistas” –; e a defesa da democracia burguesa em vez da “democracia” não capitalista.
Depois de resumir abreviadamente estas divergências entre os que ficaram e os que saíram, gostaria de tirar duas conclusões. Primeira, são os objectivos definidos pela CDE, que era nitidamente influenciada pelo PCP, e criticados no comunicado, que tornam depois difícil explicar, porque é que alguns ainda continuam a insistir que o PCP pretendia no pós-25 de Abril implantar o socialismo em Portugal, através de uma ruptura revolucionária, que instaurasse, como fez Lenine na Rússia, a ditadura do proletariado. Uma das alterações que o PCP introduziu nos seus estatutos aprovado no primeiro Congresso que realizou depois da Revolução dos Cravos foi a eliminação, quanto a mim justificada, do termo “ditadura do proletariado”. Por isso quando hoje o PCP se diz herdeiro da tradição leninista e acusa outras forças políticas de reformismo e eleitoralismo (ver o recente artigo de José Manuel Jara, no Avante! ), devia ter cuidado e reler os seus textos ainda recentes.
Segunda, quando hoje a maioria dos herdeiros dos “revolucionários” dessa época aparecem a criticar o anquilosamento actual do PCP, a defesa que faz das ditaduras de esquerda, etc., etc., que sendo fundadas, esquecem que, de um modo geral, as propostas que apresentaram no passado eram bem mais “perigosas”, do ponto de vista do normal funcionamento das instituições democráticas, do que aquelas que o PCP hoje propõe. Por isso, como todos temos telhados de vidro, era bom que tivéssemos mais pudor nas apreciações que fazemos uns aos outros.

7 comentários:

Joana Lopes disse...

Jorge,
Obrigada pelo relevo ao meu texto nos «Caminhos» e pelas reflexões complementares.

Apenas uma observação à parte final do teu post, a propósito dos telhados de vidro. Todos os temos, seguramente, mas devo dizer que estes não me tiram um minuto de sono. As posições que tomei no passado (não necessariamente as que vêm no documento sobre a CDE, mas outras bem mais radicais) seriam mais «perigosas» do que o «normal funcionamento das instituições democráticas» em que vivemos? Talvez, mas nunca o saberei. Mas sei, isso sim, que mantenho algumas delas no meu horizonte utópico e que é isso que me dá alento.

Indo directamente ao teu «conselho»: era o que faltava que alguém que no passado foi estalinista não pudesse criticar os que hoje eventualmente o sejam; que eu que fui católica «fundamentalista» não pudesse denunciar os males dos que hoje considero como tais, etc. etc. E sem a obrigação de fazer preceder cada tomada de posição por uma espécie de autocrítica sistemática...

Andamos, portanto, em diálogos quase diários, o que é óptimo. Mas, se não me engano, cada vez mais divergentes...

Abraço

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Cara Joana Lopes
Responder-lhe-ei em francês e para não agravar mais a polémica pública: “sans reproche”.
Com amizade
Jorge

Anónimo disse...

Enviei um comentário, talvez um pouco longo, sobre este «post», ou seja mais sobre o documento divulgado pela Joana Lopes.

Terei cometido algum erro técnico que o fez não chegar ao destino ?

Anónimo disse...

Era este o «comentário» perdido:

A divulgação do documento «Porque saímos da CDE» por Joana Lopes Lopes é uma útil contribuição e, só por si, confirma (sem que isso fosse necessário) a sua honestidade intelectual no lidar com o passado.

Acresce que, por exemplo, eu não conhecia o documento certamente por acidentes da história ou porque, uma vez consumada a cisão, se tornaram menos frequentes os contactos pessoais com os que sairam, ou porque o documento pode ter uma circulação mais restrita aos amigos do grupo que cindiu com a CDE.

Sem me pôr em bicos de pés, lembro que em tempos a Joana Lopes já havia evocado o plenário de Santa Cruz em que se consumou a cisão mas relacionou-a mais com questões de funcionamento e de «hegemonia do PCP».

Na altura, coloquei na sua caixa de comentários o seguinte testemunho (que viria a ser no essencial acompanhado por um testemunho do João Tunes):

««Em termos muito abreviados, gostaria de dar um testemunho parcial sobre o plenário de Santa Cruz em que, por sinal, fui o último orador a falar.

E venho sobretudo discordar da visão de Joana Lopes segundo a qual o que aí se passou «girava, como sempre, à volta de questões de representatividade e de resistência ao que era interpretado como imposição de hegemonia por parte do PCP e suas franjas».
Creio que isso é ver só a superfície das coisas. É certo que na CDE de Lisboa tinha havido um aceso debate em torno de questões organizativas e funcionamento, mas o que pesou decisivamente no afastamento daquele grupo ou corrente do movimento de unidade eleitoral foi a circunstância dessa corrente ter entrado num processo de radicalização política que desvalorizava a intervenção eleitoral como forma de luta e contestava a centralidade da tónica antifascista (insistindo numa tónica de luta pelo socialismo).

Foi, em termos de orientações e ideologia, um abandono ou uma saída «pela esquerda» em relação ao PCP para já não falar que esse grupo não apreciava especialmente a participação do PS nesse esforço de 73 até porque tinha sido bastante activo na polémica com a ASP/CEUD em 69.

Bata ler um honesto depoimento que Jorge Sampaio (que também falou no plenário de Santa Cruz) fez para um jornal por volta dos 30 anos do Congresso de Aveiro de 73 (onde não foi) para se perceber que as raizes das divergências eram pelo menos muito próximas da natureza das que eu procurei descrever.(...)»

É de justiça acrescentar que face a este meu esclarecimento ou opinião, Joana Lopes manifestou uma grande abertura de espirito nisso se distinguindo de tantos e tantas que têm o hábito de ser cegos e surdos a todos os argumentos alheios.Aliás, fui eu que, a seu pedido, encontrei e lhe enviei o citado depoimento de Jorge Sampaio sobre o 3º Congresso da Oposição Democrática.

Creio que, como resultará evidente, as citações mais destacadas agora feitas do «Porque saímos da CDE» confirmam o rigor e verdade da minha apreciação política.

Pedindo desculpa pela extensão, ainda uma informação final que tem algum interesse sobre este «caso»: é que, na Declaração Final do 3º C.O.D., escrita por José Tengarrinha, há propositadamente, no último parágrafo, uma referência ao «socialismo», o que constituia à época uma óbvia «concessão» e um último gesto de boa-vontade para tentar abrir portas ao regresso à CDE dos que tinham saído.

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Uma resposta genérica a dois comentários do Vítor Dias, um aqui o outro no post anterior.
Sei que um blog é também um campo de batalha e eu tenho-o utilizado frequentemente com essa finalidade. Só gostaria que não travassem no meu blog batalhas que não são as minhas. Por outro lado, e porque o inserido neste post tem uma função mais esclarecedora, tenho muito gosto que se sirvam deste espaço para iniciar possíveis diálogos.
E por aqui me fico.

Anónimo disse...

Caro JNF :
Desculpe, mas no percebo ao que vem a história das batalhas.
Neste comentário anterior é evidentissimo que não estive a travar nenhuma batalha com ninguém e muito menos com Joana Lopes, mas sim a recordar um contexto anterior desta temática.

No outro fiz uma observação a uma frase de Joana Lopes inserta num comentário seu ao post sobre o Eixo do Mal.

E, nesse caso, não vejo o que é que isso tem de mal ou passa as marcas.

Meu Deus, parece que anda toda a gente muito susceptível !.

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Caro Victor Dias
Vou ser um bocadinho mais explícito.
Você em relação a comentários meus que se referem a posições ideológicas actuais do PCP nada diz e em qualquer deles dirige-se unicamente à Joana Lopes, sou pois levado a concluir que o seu objectivo é unicamente entrar em contacto com ela. Não sou ciumento, mas há-de concordar que o meu blog não será o sítio mais indicado para discutirem, para não empregar uma expressão de sentido mais ambíguo. No entanto, como também afirmo o meu blog está sempre disponível para se inicie entre os dois qualquer diálogo mais frutífero, assim mutuamente o queiram.