Tinha falado com ele pelo telefone há dois ou três dias, disse-me que estava a tomar antibiótico para uma tosse horrível que o atacava, já tinha dificuldade em andar e falar. Respondi-lhe que iria arrebitar. No Domingo chegou, pela voz do Mário, a notícia de que tinha morrido naquela manhã, às 10h 30. O seu nome de guerra era Quim João, na vida civil chamava-se Joaquim João dos Santos Brás.
Conhecemo-nos no Liceu Gil Vicente, não sei quando, mas pelo menos tenho a certeza que no 6º e 7ºano eu estava na cadeira da frente e ele na de trás. Começou aí a nossa amizade, tinha eu 16 anos e ele 15.
Provavelmente, por incentivo meu, apareceu no grupo que se reunia, entre as 7 e as 8h da tarde, num gradeamento que ficava ao cimo da Angelina Vidal, do lado de quem vira para a rua da Graça. Por vezes era em frente, junto a uma venda de jornais, que nessa altura estavam arrumados em cima do passeio. Toda essa zona tinha o nome de Quatro Caminhos, que resultavam do cruzamento da Angelina Vidal, com a rua da Graça, Sapadores e Penha de França. Reunimo-nos aí bem mais de dez anos, até que a vida nos dispersou: casamentos, tropa, prisões, novas moradas, exílios, enfim a vida.
Já aqui tinha feito a descrição deste grupo.
Nos finais do nosso 7º ano, admitamos Primavera de 1961, por sugestão do pai do Mário, começamos a frequentar uns colóquios que se realizavam na Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal, ali às Escadinhas do Duque. A primeira a que assistimos foi de Alberto Ferreira, sobre filosofia, já se sabe que encapotadamente sobre filosofia marxista. A sua importância sobre o meu espírito em formação foi tão grande que rapidamente ultrapassei a filosofia de António Sérgio, nessa altura un mâitre-à-penser para os jovens democratas da minha geração, e me aproximei rapidamente do marxismo. Sobre estas conferências já falei aqui.
Só gostava de acrescentar um pequeno episódio picaresco. No regresso a casa, sempre a pé, passava-se pela Praça do Chile e ia-se beber um copo de vinho verde à pressão, acompanhado de torresmos. Recordações da juventude!
No final do Verão de 1961, antes de entráramos para as diversas faculdades que cada um ia frequentar, o Quim João foi para o Técnico, Engenharia Civil, eu para Ciências, outros para Direito, chegou-nos de Paris um pândego, e digo isto hoje, porque na altura não tínhamos a clara consciência da vacuidade desta personagem, nosso colega no liceu, que vinha credenciado para organizar um grupo oposicionista aqui em Lisboa. Levámos a sério o convite e começámo-nos a reunir, tentando juntar novos amigos. Recolhemos fundos, muito poucos, comprámos ou deram-nos uma caixa de lápis vermelhos que escreviam nas paredes e eu e outro ainda andámos a apreçar uma máquina de stencil, objecto hoje pré-histórico, mas que era o único que nos permitia reproduzir centenas de comunicados. Rapidamente nos demos conta da inutilidade da nossa acção. Por muito que nos organizássemos éramos sempre uma gota de água no oceano e já havia outros a fazer o mesmo. O tal pândego nunca nos indicou quem eram os seus mandantes. Assim, ao fim de algum tempo acabámos a fazer conferências de aprofundamento ideológico. Esta experiência está também já relatadas no post anteriormente assinalado.
Em 1962, em 24 e 25 de Março, ia ter lugar o Dia do Estudante. Os episódios do primeiro dia já eu os descrevi aqui. Aí relato a agressão policial ao Quim João e a sua posterior prisão à saída do Hospital Santa Maria, onde se tinha ido tratar. A confirmação da história pelo próprio está num PS. aqui. A partir daí este meu amigo tornou-se um homem “politicamente suspeito”. Soube-o quando foi informado pelo aspirante que comandava o nosso pelotão em Mafra, que nos últimos dias de instrução o chamou a ele e, vejam lá, ao Correia de Campos, o ex-ministro do PS, que agora mostra simpatias por Cavaco Silva, para lhes transmitir essa informação, garantindo-lhes que ele não era polícia e que por isso não tinha que prestar informações à PIDE. Era o 25 de Abril já a despontar. Já agora, acrescento que fizemos juntos, em Mafra, os três primeiros meses de tropa. Pertencemos à incorporação de Abril de 70.
Mas a nossa maior experiência e que nos marcou para a vida inteira foi a nossa actividade no Cine-Clube Universitário de Lisboa (CCUL). Ele entrou mais cedo do que eu. Foi juntamente com o Mário oferecer-se para colaborar. A primeira tarefa que lhe deram foi arranjar mil envelopes e os respectivos selos para enviar uma circular aos sócios. Pensou que era simples. Na primeira capelista que entrou a pedir mil envelopes, deram-lhe para aí uns 50 e foi com muita sorte. Reunir os mil foi uma aventura. Chegou com eles, orgulhoso, ao cine-clube, ninguém lhe agradeceu aquele esforço. Continuou a trabalhar. No ano lectivo de 1967/68 torna-se seu presidente e inicia a época com um ciclo sobre cinema americano, que foi a sua glória, em que se destacam As duas feras, de Howard Hawks, A Corda, de Alfred Hitchcock, Serenata à Chuva, de Stanley Donen e Gene Kelly, Pistoleiros da Noite, de Sam Peckinpah e Jerry 8 ¾, do próprio Jerry Lewis, isto depois de um ano agitado em que tinha havido uma cena de pateada, relatada por mim aqui.
É evidente que o Quim João também tinha que estar presente quando da invasão do Cine-Clube pela PIDE. Ver aqui. No episódio que relato, de os pides nos ameaçarem com uns tabefes, era ele o principal destinatário, já que involuntariamente tinha tocado no telefone. Foi também ameaçado de prisão quando se dirigiu à PIDE para reclamar os ficheiros que nos tinham sido roubados.
Neste nosso círculo de amigos havia de entrar também o PCP. Como os dois pertencíamos ao Cine-Clube, achava o Partido que a nossa frente de trabalho era aquela e nunca nos pediu muito. Penso que durante um certo tempo era eu que recebia as quotas do Quim João e lhes dava depois destino. Acho que o envolvi a ele e a um primo meu numa distribuição nocturna de comunicados pelas caixas de correio de não sei que bairro. Sei que quando nos embrenhámos mais a sério na actividade partidária já não soube nada da sua vida política, nem ele da minha.
Depois do 25 de Abril, também tivemos destinos diferentes no PCP, eu fiquei ligado primeiro aos professores e depois à função pública e ele ao sector intelectual, às coisas do cinema. Só mais tarde nos juntámos e fomos contemporâneos, na direcção do sector intelectual, eu novamente ligado ao cineclubismo, agora através do ABC Cine-Clube de Lisboa, e ele penso que continuava com o cinema. Depois a vida foi-lhe um pouco madrasta, a empresa onde trabalhava afastou-o, teve que recomeçar a meio da vida num novo emprego, numa Câmara Municipal, a de Grândola. Acho que gostou. Teve liberdade suficiente para fazer obra e melhorou sensivelmente a qualidade de vida de algumas populações. Orgulhava-se muito das suas criações. Com a doença veio a reforma. Entreteve-se nos últimos anos a compilar para DVD todos os filmes que possuía noutros formatos, instalou uma pequena sala de cinema na sua casa, em Grândola, e teve a felicidade de ver os seus filhos enveredarem profissionalmente pelo cinema, que foi desde o princípio, no cine-clube, a sua paixão.
Morreu militante do PCP, mas muito descrente das suas possibilidades de renovação. Morreu, por isso, um camarada.
PS. (31/101/11): da leitura de um artigo de Pacheco Pereira, no Público, e de um post de Vítor Dias, no seu blog, percebi que a memória dos meus tempos de juventude tem algumas falhas. Chamei “máquina de stencil”, àquilo que na altura se chamava simplesmente copiógrafo e que utilizava, para imprimir vários milhares de comunicados, um stencil batido à máquina.
Um camarada do PCP e amigo enviou-me hoje um abraço em memória do Quim João, dizendo que tinha visto a notícia no Avante, de 27/01/11. Fui ler, afirmam que ele entrou para o Partido, em 1980, tirem-lhe menos 15 anos e estarão a falar verdade. Penso que não foi por desconsideração, mas a concelhia de Grândola devia andar mal informada.
4 comentários:
É a primeira vez que venho a este blogue e gostei.Bonito testemunho,comovente.Prometo vir a estes lados, diariamente,....dar as minhas ferradas!Luis Reis
Apareça sempre que será~bem vindo
Também fui a primeira vez que vim. Este post é delicioso. E como tem saidas para outros posts virei cá voltar. E vejo que, para aém desta última do Alegro, temos algumas vivências em comum. Eu também tenho um amigo, e Quim, muitos anos ligado ao ABC. E, embora mais novo, também fui da incorporação de 70, em Mafra. Mas estava do outro lado da barricada. Enquanto os feijões verdes, os soldados, juravam bandeira na praça em fente do Convento, eu, e mais outros turras, fazíamos fisgas de arame e atirávamos fisgadas com clipses às partes baixas dos soldadinhos perfilhados. Gostavamos e os verem a contorcerem-se de raiva e fúria, dor não haveria de ser, por não poderem fazer nada. Se alguma vez o atingi, as minhas desculpas. Um abraço
Jorge, obrigada pelas tuas palavras. Não conheço melhor imagem de filme para homenagear o pai. Recentemente o meu irmão encontrou a claquete do filme que ele fez com o mário no curso da mocidade portuguesa, em 62... o filme propriamente dito, tudo indica que se perdeu. Um abraço, Rita
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