14/09/2008

A razão da minha ida à Festa do "Avante!"


Passada que foi a agitação da blogosfera provocada pela realização da Festa do Avante! eis que me decido a revelar as razões porque, no Domingo, de fugida, resolvi ir à Festa do Avante!.
Para além de razões familiares, que não são para aqui chamadas, queria comprar um livro publicado pelas Edições Avante!, lançado durante a Festa com a presença dos autores e chamado O Socialismo Traído – Por detrás do colapso da União Soviética, de Roger Keeran e Thomas Kenny. Não estive presente na sua apresentação, que foi Sábado, mas aceito este pequeno relato do sucedido.
Sempre imaginei a venda de livros e discos na Festa como uma realização semelhante a uma que era promovida há muitos anos pelo PCF, que se chamava a Semana do Livro Marxista, onde nunca fui, mas pela descrição dos colóquios lá realizados e pelo aspecto gráfico dos seus cartazes, sempre encheu o meu imaginário de comunista rodeado de livros marxistas. Por isso, sempre encarei a Feira do Livro e do Disco com uma grande frustração. Os livros estavam sempre cheios de pó, todos a monte e, muitas vezes, na tenda onde se promovia a sua venda, havia um calor insuportável, dado que esta funcionava como estufa.
No entanto, no princípio, em que o PCP tinha duas editoras, a Avante! e a Caminho e até uma distribuidora importante, as coisas eram ligeiramente melhores. Havia fundos editoriais, onde se podiam encontrar algumas preciosidades por tuta-e-meia.
Hoje, depois da venda Caminho, a Feira do Livro é um autêntico deserto. Não há fundos editoriais a preços de saldo (pelo menos não vi). Tudo tem um aspecto de ser despejado a eito e não há critério, nem selecção dos livros. Vi lá mesmo um livro fascista sobre o 25 de Abril (25 de Abril – Marxismo e Revolução, da Nova Arrancada), que talvez fosse seleccionado pelo título. E critério e selecção não significam censura. Há anos comprei na Festa esse belo livro de Pierre Daix, Acreditei na Manhã – Um Comunista revela os motivos porque abandonou o Partido, e sempre considerei que era o local certo para o adquirir, apesar de não esperar lá encontrá-lo.
Dito isto, passemos à primeira impressão sobre o livro que adquiri.
O Socialismo Traído pretende justificar a queda da União Soviética dando uma interpretação muito favorável àquela que a actual Direcção do PCP gostaria que fosse: a traição de Gorbatchov e de alguns membros da sua equipa. Simplesmente filia-a numa linha que vem desde Bukharine e Kruchtchov e termina no político já citado. Passando, pasme-se, por Jdanov. A boa, a da classe operária, seria a de Lenine, Estaline e Malenkov.
O capítulo que estou a ler onde estas duas linhas são referidas, localiza-se ainda no princípio do livro, e chama-se Duas tendências na Política Soviética. Retoma, ainda que não o diga, um velho hábito dos manuais de marxismo-leninismo, que era a existência de duas linhas, uma idealista e outra materialista, isto aplicava-se à arte, à filosofia, e neste caso à política, a linha pequeno-burguesa e do campesinato e a da classe operária.
Neste mesmo capítulo é feita a espantosa afirmação que Gorbatchov teria lido a biografia de Bukharine feita pelo historiador norte-americano Stephen F. Cohen. - Livro que eu recomendo vivamente a quem se interessa por estes temas da história da URSS e de que há uma edição brasileira (Cohen, Stephen. Bukharin, uma biografia política”, Paz e Terra, 1990). -Segundo os autores do livro que vimos citando “de acordo com um conselheiro próximo de Gosbatchov, Anatoli Tcherniaev, foi então que Gorbatchov decidiu reabilitar Bukharine, e a reavaliação de Bukharine “abriu as comportas para a reconsideração de toda a nossa ideologia”” (Keeran, R e Kenny, T., O Socialismo Traído, “Avante!”, pag. 29). Depois de assassinado legalmente por Estaline, Bukharine torna-se assim o responsável ideológico pelo fim da URSS.
Mas há mais. Afirma-se a determinada altura “Kruchtchov concentrou-se na alegada (sublinhado meu) repressão de Estaline sobre os líderes do Partido e afirmou que metade dos delegados ao XVII Congresso e 70 % de Comité Central foram mortos. Ken Camaron, biógrafo de Estaline, concluiu que é “difícil acreditar que os números de Kruchtchov estão correctos”. E a seguir, entre parêntesis, afirma-se que “usando os arquivos soviéticos recentemente abertos, os estudiosos (o estudioso citado é unicamente Michael Parenti -JNF) determinaram o número total de execuções de 1921 a 1953 em 799 455, muito abaixo dos milhões estimados por Robert Conquest, Roi Medvedev e outros académicos anti-soviéticos” (idem, pag. 41).
Os autores que avalizaram estas duas afirmações são ambos americanos, com obra publicada. O primeiro contesta um assunto que foi objecto de consenso na própria direcção do PCUS e que vem relatado, num documento universalmente aceite como verdadeiro, que é o Relatório Secreto de Kruschtchov. O segundo levanta a questão dos números de mortos, também debatida a propósito dos nazis, mas que são tão absurdamente grandes, que mais cem mil ou um milhão pouca importância tem em função da barbaridade do acontecido.
Por aqui me fico, esperando dentro em breve fazer uma crítica ao livro em questão. Ficando este cheirinho como forma de despertar o apetite a quem queira debruçar-se sobre a questão do fim da URSS.
PS.: Como as Edições "Avante!" ainda não publicitaram o livro referido, tive que recorrer à fotografia da edição original.

2 comentários:

o castendo disse...

Sobre os números:
A comissão nomeada por Gorbachov editou um relatório de mais de 9 mil páginas.
Pode pesquisar pelos nomes dos seus responsáveis - Viktor Zemskov,
Oleg Khelevnyuk e Arsenii Roginsky.
Pode também ler um texto de um português aqui: http://hist-socialismo.blogs.sapo.pt/ texto «Mentiras sobre a história da União Soviética».
Curiosamente, ou talvez não, apesar de os dados serem públicos há mais de 15 anos a sua divulgação pela comunicação social dominante é quase igual a zero...
Já agora 800 mil mortos em 30 anos, não é o mesmo dos 7,5 milhões anunciados por Robert Conquest, para não falar nos 100 milhões de Alexander Soljenítsin.
Da mesma forma que 6 milhões de judeus mortos no holocausto, não é o mesmo se tivessem sido 600 mil, e menos ainda se o número fosse de 60 mil.

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Vi o seu comentário e, lamento afirmá-lo, mas veio bater na porta errada.
1º Em qualquer trabalho meu nunca discuti a veracidade dos diferentes número de mortos por perseguição política na ex-União Soviética, no tempo de Estaline. Nem nunca apresentei qualquer valor. Só disse, e se quiser volto a repetir, que o número em qualquer dos casos é um horror.
Aprecio a sua indicação do relatório referido e que foi apresentado pela Comissão que foi constituída por Gorbachov, que desconhecia.
2ª Foi ler o trabalho que me indicou, e que vem publicado num site que já estava nos meus favoritos, salvo seja, chamado “Para a História do Socialismo”, mais fácil de consultar.
Se tem lido os meus posts anteriores, principalmente um sobre o Pacheco Pereira e um comentário a uma indicação de um site de vítimas do comunismo indicada, também como comentário, a um post do blog “Entre as Brumas da Memória”, reparará que sempre repudiei aqueles que afirmam que só agora se denunciam os crimes de Estaline. A propaganda fascista, da Guerra-fria e outra, já há muito o vinha fazendo, com deturpações e finalidades evidentes. Por isso o que diz o artigo sugerido não é novo para mim. Poderá ter algum interesse, o passado de Robert Conquest.
Simplesmente eu teria vergonha na cara de sugerir a leitura de um texto onde é dito que “Zinoviev, Kaménev, Piatakov, Radek, Smirnof, Tomski, Boukharine e outros tão queridos à imprensa ocidental burguesa, utilizavam-se dos postos que o povo soviético e o partido lhes tinham dado, para roubar dinheiro ao estado, para que esse dinheiro fosse utilizado pelos inimigos do socialismo no estrangeiro na sabotagem e no combate à sociedade socialista na União Soviética.” E por isso foram torturados e mortos.
3º A história dos crimes de Estaline não é uma invenção da imprensa burguesa, foi o próprio PCUS que a denunciou no célebre relatório de Kruschtchov que os senhores hoje, ao contrário do que já disseram, querem, tal como os “esquerdistas” da época considerar como uma peça revisionista ou, pior, ainda, de traição ao socialismo.
Por isso senhor Castendo se quiser discutir com seriedade os temas do estalinismo, estou disponível, se for nos termos do texto citado, não conte comigo.