06/03/2011

Um economista transvertido de historiador

Conhecia o Sr. Campos e Cunha como um economista que tinha sido convidado por Sócrates para ser ministro da economia. Tantas asneiras disse que foi corrido por incompetência. Despeitado, passou a dizer mal dos Governos de Sócrates. Mas mesmo assim a sua critica incidia na área que lhe era específica.

Não é que este senhor, por ter lido este Natal dois livros de história, resolveu tornar-se historiador e escrever um artigo para o Público (sem link), denominado Salazar, que abarca quase três quartos da história do Século XX português?

O primeiro livro que leu refere-se à Primeira República e é de António José Telo. Não li o livro, mas a ser verdade o que diz Campos e Cunha dele - “chamar  à  I República  democracia e o  reino da liberdade é uma visão falsa. E Telo não teve medo de o mostrar” -, estamos perante a continuação da teoria reaccionária de Rui Ramos, o “camelot du roi à portuguesa”, como eu lhe chamei, e que, pelos vistos, tem feito escola. Já se sabe que a I República não foi feita por meninos do couro, reprimiu, e por vezes selvaticamente, a classe operária. Simplesmente para estes senhores, e não sei se é o caso de António José Telo, a I República foi menos democrática e liberal do que a monarquia constitucional e muitas vezes reprimiu e restringiu as liberdades mais do que o fascismo, que seria portanto um santinho, comparado com as maldades da República (ver os meus textos sobre este assunto aqui  e aqui).

Quanto ao segundo livro é a biografia de Salazar, de Filipe Ribeiro de Menezes, que pelos vistos foi lida em estado de candura, tanto à direita como à esquerda. Clara Ferreira Alves, no Eixo do Mal, acha que é uma sólida biografia ao estilo anglo-saxónico. Foi preciso Manuel Loff (Le Monde Diplomatique, Edição Portuguesa, nº 52, Fevereiro de 2011) vir referir algumas das barbaridades que lá se escreveram, para se compreender o verdadeiro significado da obra.

O que é mais espantoso é que Campos e Cunha, que não é nenhum jovenzito, nascido depois do 25 de Abril, precise de ter lido este livro para compreender alguma coisa sobre a história do salazarismo. A principal é que conclui que Salazar era um homem acossado. Acossados eram os seus opositores, principalmente os comunistas, que viviam na mais negra não existência, a clandestinidade, para poderem sobreviver e lutar contra o regime. Mas isso é coisa que não preocupa muito este senhor.

Mas investiguemos porque é que Campos e Cunha afirma que Salazar é um homem acossado?

É que Salazar não participou no golpe do 28 de Maio e teve que chegar a pulso onde chegou: a Presidente do Conselho e ao poder que deteve. Aqui é esquecer toda a história dessa época. Não tomar em consideração que Salazar foi o congregador de toda a direita reaccionária, católica e monarquista, que quando tomou posse como ministro das finanças, disse claramente que sabia o que queria e para onde ia. Que essa mesma direita, depois dos fracassos dos primeiros-ministros militares, encontrou nele o chefe de que necessitava. Não foi por ser acossado pela direita que ele se tornou ditador, foi posto lá por ela porque representava o seu denominador comum, o seu chefe carismático. Isto está estudado, e bem estudado, aparecer agora a escrever-se o contrário parece-me não passar de revisionismo histórico.

Mas o mais espantoso é a frase seguinte “acossado pelas influências revolucionárias da República Espanhola” e logo a seguir acossado com receio da anexação de Portugal pela Espanha de Franco.

Aqui então dá-se a inversão completa da história. Não foi Salazar que foi acossado mas sim a nascente República, pois foi Salazar que conspirou contra ela. Foi de Portugal que partiu o General Sanjurjo que iria comandar a sublevação e que depois morreu num desastre aéreo, quando se dirigia para Espanha. Foi com o apoio explícito de Portugal e do Governo português que aviões alemães e italianos conseguiram trazer Franco do Norte de África para Espanha e foi também com a nossa colaboração que as tropas sediciosas puderam passar da Andaluzia, através da Estremadura, para chegarem a Madrid e depois ao longo da guerra o apoio explícito em homens e material ao Governo insurrecto de Burgos.

Deixemos a história da Segunda Mundial, a possível invasão de Espanha, mas também o papel desempenhado por Salazar ao serviço de Sua Majestade para conseguir a neutralidade espanhola.

Mas depois toda a história pós-II Guerra Mundial é também a de um homem acossado. Acossado pela campanha de Norton de Matos e de Humberto Delgado e depois pela guerra de África e afirma Campos e Cunha: “Acossado até ao fim, em 1968”. Espantosa interpretação desta nossa história contemporânea que Campos e Cunha de certeza também viveu. Salazar é que estava acossado, mas Humberto Delgado é que foi assassinado às suas ordens em Espanha. Se não fosse ridículo, diria que era triste.

Por fim vem a velha discussão se Salazar era fascista e se o regime o seria? Já se sabe que para Campos e Cunha isso não se verifica. A discussão é antiga e não vou mais uma vez voltar a ela. Remeteria, se o Victor Dias não se importasse, para um post que ele fez e para os textos aí citados.

Para terminar, a mesma questão já por mim levantada no início, que é a comparação entre a repressão na Primeira República e no fascismo, que segundo Campos e Cunha, “Salazar não se compara mal”. Estamos mais uma vez no reino da historiografia de inspiração em Rui Ramos, que mais não passa do revisionismo em história, semelhante ao esforço que certos historiadores alemães têm feito para negar o Holocausto. Campos e Cunha, com a sua enorme ignorância, junta-se ao grupo.

PS. fotografia roubada ao já citado post de Vitor Dias.

4 comentários:

Armando Cerqueira disse...

Campos e Cunha, Ministro das Finanças do 1º Governo Sócrates ficou tristemente célebre pela brevidade (6 meses), pelo motivo da sua saída (foi demitido ou demitiu-se): a despeito da política de austeridade do Governo, ele não prescindiu de auferir simultaneamente vencimento e pensão. Não se tendo notabilizado por obra ministerial feita apresenta-se como importante ex-Ministro das Finanças, caracterizando-se pelo despeito, quase ódio, votado ao seu anterior Primeiro-Ministro e ao PS, partido da Direita envergonhada disfarçada, desde o Dr Mário Soares, de esquerda, que apesar das suas políticas não está tão à direita quanto o Dr Campos e Cunha e a Direita Conservadora/Liberal a que pertence desejariam.

Campos e Cunha é fiel à máxima dos nossos ‘avôs’ segundo os quais quem sai aos seus (conformação política, moral, ideológica) não degenera. Ele não degenerou. É filho de um credenciado especialista em ‘acção psico-social’ do Exército colonial português (quem ‘passou’ involuntariamente pela guerra colonial sabe o que isso significava, recorda a repugnância que tais acção e especialistas lhe provocavam), o Ten-cor Ferreira da Cunha, oficial da Direita Militar subscritor do ‘documento dos Nove’, conspirador contra o processo revolucionário em 1975, intimamente implicado na preparação, com a Embaixada dos EUA e portanto da CIA, de um golpe de Estado contra-revolucionário que, designadamente, previa a substituição violenta do Gen Costa Gomes. Ferreira da Cunha traía o Gen Costa Gomes, CEMGFA, de quem era chefe de gabinete e onde preparava a conspiração. Isto está documentado em obra recente. O filho, portanto, ter-se-á alimentado do mesmo caldo de cultura.

António José Telo poderá não ser a mais credenciada e séria fonte historiográfica para esses períodos da I República e da II República (Ditadura). Por necessidade da minha investigação sobre o PREC apenas conheço a sua ‘História Contemporânea de Portugal’ (2 volumes) sobre a III República. Não é uma obra científica. Faz afirmações sem as documentar. Confunde opinião pessoal do ‘historiador’ com reconstituição de factos e dos processos. Mistifica e toma partido. É maniqueísta: há os ‘bons’ (que são sempre a Direita (PPD, CDS, Direita Militar) e o Centro (PS soarista e ‘melo-antunistas’), MRPP e maoistas de direita, e há os ‘maus’ (que são a ‘escumalha’ esquerdista: Esquerda Militar (fulanisticamente ‘os gonçalvistas’), Esquerda Militar Radical (grupo de oficiais alinhados com o então Gen Otelo Saraiva de Carvalho, ´copconistas’) , PCP, MDP/CDE, MES, FSP, UDP, etc). Telo é mais um ‘estoriador’ da III República do que um historiador. Toda a obra é mistificação e deturpação. É um dos homens do ‘establishment’ da Direita revisionista por culpa da Esquerda: é que a Esquerda não escreve (salvo raríssimas excepções), não investiga, não desmistifica.

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Caro Armando Cerqueira

As suas informações são muito úteis. Não sabia que o Campos e Cunha era filho do tenente-coronel Ferreira da Cunha e, segundo averiguei no Google, já se tinha iniciado no ofício de historiador ao escrever para o Público um artigo sobre o 25 de Novembro. Neste, dada a sua condição de filho de um dos participantes pelo lado dos vencedores, permite-se tecer considerações sobre aquela data. Primeiro tecendo loas ao general Pires Veloso, um reaccionarão do Norte, e depois escandalizar-se com o poder excessivo com que o PCP ficou depois daquela data. Esse artigo pode ser encontrado aqui http://jumento.blogspot.com/2007_12_02_archive.html.
No artigo citado, que se refere a um jantar de homenagem ao Pires Veloso, parece que este na sua boçalidade própria de militar grosseirão, teria afirmado que Melo Antunes era um comunista, o que parece que desagradou a alguma parte da assistência. Campos e Cunha não notou nada, porque tão embevecido estava com o seu herói, que não reparou nas aleivosias deste. Este assunto vem referido aqui http://www.rostos.pt/inicio2.asp?cronica=220009&mostra=2 .
Quanto a António José Telo, que eu conhecia de um livro sobre a República, de 1980 (Decadência e Queda da I República Portuguesa, editado pela Regra do Jogo), e de que não tinha má memória, vim a saber pelo Google que é professor Catedrático na Academia Militar e que foi nomeado pelo Governo de Sócrates, pelo então Ministro da Defesa, Nuno Severiano Teixeira, director do Instituto de Defesa Nacional. Portanto, alguém que neste momento se coloca na área do PS, provavelmente na sua ala direita, já que actualmente para se lidar com militares tem que se ter confiadamente atlantista. Ora isto confirma o que você tinha dito sobre ele e sobre o seu livro de História Contemporânea.
Para terminar falei com a minha prima Lea e ela lembra-se desse encontro à porta do Imaviz e de ter ido almoçar consigo. Será assim?

Armando Cerqueira disse...

Caro Jorge,
obrigado pela sua confirmação. Quanto ao Prof A.J. Telo creio ter lido algures na 'net' que ele seria originário da Extrema Esquerda. Se assim for será mais um transfuga...
Exactamente: almocei com a Lea e falámos na minha intenção de ir cooperar para África. Afinal não fui para Luanda mas o PNV/PNUD enviou-me para o Ruanda.
Um beijinho à Lea e um abraço para si, do
Armando Cerqueira

Armando Cerqueira disse...

Apenas um complemento ao meu último comentário sobre o Prof A.J. Telo. Segundo esta referência bibliográfica (O Sidonismo e o Movimento Operário Português. Luta de classes em Portugal 1917-1919. António José Telo. Ulmeiro. Lisboa. 1977) há mais de 30 anos o actualmente defensor do atlantismo e das políticas politicamente correctas da Direita, era um intelectual marxista ou marxisante. Depois, deu uma cambalhota de 180º... Com a breca, as voltas que o pequeno mundo dá...
É natural e desejável que as pessoas mudem, evoluem, mas mudar para o contrário... levanta sérias dúvidas sobre a credibilidade a atribuir às posições de então e às de hoje. E isso aplico-o também à/s sua/s obra/s. Que confiança me merecerá/ão?

Armando Cerqueira