Saiu recentemente o livro Álvaro Cunhal, retrato pessoal e íntimo. Biografia, do jornalista Adelino Cunha, da Esfera dos Livros. O seu lançamento revestiu-se de alguma pompa e circunstância: foi apresentado por António Vitorino e na net encontram-se várias referências a esse lançamento, com o discurso do seu apresentador (ver aqui e aqui), e ao acolhimento que o livro teve na imprensa. Chega-se mesmo a mostrar vídeos de alguns dos testemunhos orais que foram recolhidos pelo autor (ver aqui e aqui). No entanto, que eu reparasse, numa consulta provavelmente apressada, ainda não li nenhuma recensão crítica ao mesmo. Sem pretender ser único, aqui vai a minha opinião sobre o mesmo.
Quanto a mim o livro é bastante desigual, notando-se que o autor conseguiu obter informação sobre alguns factos concretos da vida de Cunhal e que sobre outros teve que passar por cima, recorrendo a descrições vagas sobre o movimento comunista internacional, sobre a URSS ou mesmo sobre o PCP. Podemos mesmo dizer que quando falta tema ao autor este se desloca vários anos para a frente ou para trás na vida do Álvaro, pondo-nos um pouco à nora sobre o seu encadeado.
Os primeiros passos de Cunhal na Juventude Comunista e depois no PCP e os primeiros contactos internacionais são fracos e pouco documentados. O mesmo se verifica com a sua estadia em Paris, nos últimos anos que antecederam o 25 de Abril. A parte mais conseguida é a sua terceira prisão que se verificou em 1949, quando residia clandestino no Luso, a fuga de Peniche, em 1960, a vida em Moscovo, com a companheira e a filha, quando o seu partido e ele próprio resolveram que devia sair definitivamente do país, e depois os tempos pós 25 de Abril, mais fáceis de documentar. Mesmo assim, estes muito falhos de informação sobre as últimas conspirações em que se envolve para recuperar o partido e correr com os renovadores, que ameaçavam a sua visão do mesmo.
Os objectivos do livro são traçar o retrato pessoal e íntimo do biografado, mais do que perspectivar a sua vida política, o que não é inteiramente verdade como se verá mais adiante. Para concretizar aquele desiderato socorre-se dos depoimentos da irmã, Eugénia Cunhal, da mãe da sua filha, Isaura Moreira, da própria filha, Ana Cunhal, e de Cândida Ventura, mas isto é um caso à parte, que será examinado posteriormente. No entanto, já na biografia de Pacheco Pereira, com que esta inevitavelmente terá que se confrontar, essa parte íntima também é relatada através do retrato psicológico do Álvaro feitos por aquele autor, simplesmente este pára na fuga de Peniche, não tendo ainda publicado a parte referente ao nascimento da filha e à vida em Moscovo e em Paris e ao pós-25 de Abril. Por outro lado, aquilo que é apontado como novidade neste livro, já Pacheco Pereira o tinha feito, que é a interpretação dos seus romances, assinados com o nome de Manuel Tiago, como sendo, em parte, autobiográficos.
Pode-se dizer que há uma grande empatia entre o autor e Álvaro Cunhal, apesar de estabelecer uma diferença entre o Cunhal da clandestinidade e o dirigente que vive no exílio, na alta-roda do movimento comunista. Já se sabe que, para Adelino Cunha, o primeiro é muito mais genuíno que o segundo. No entanto, verdade seja dita, Cunhal nunca é apresentado como sedento de poder, que teve que destronar Pavel (Francisco Paula de Oliveira), nos anos 30, ou Júlio Fogaça nos anos 50, para poder ser secretário-geral, como é frequentemente referido. E mais, os anos mais negros do partido, com acusação de assassínios de “traidores”, são aqueles em que Álvaro está ausente, por estar preso.
Há em todo o livro uma clara oposição entre o que foram os propósitos do movimento comunista internacional e da própria URSS e os do Cunhal, enquanto os primeiros são sempre criticados utilizando um certo anti-comunismo de pacotilha, o segundo prossegue com objectivos que, mesmo que sendo errados, são suficientemente nobres para poderem ser seguidos pelo biografado. É esta a parte que de certo modo mais confunde no livro e o torna desse ponto de vista desinteressante e, quer queira ou não o autor, ocupam grande parte da sua espessa biografia, de mais de 600 páginas.
Convém realçar, porque é verdade, que na parte final relativa à ascensão de Gorbachev e depois de Ieltsin o autor não se perde em rodriguinhos elogiosos e dá uma visão bastante desencantada deste último período da URSS e depois já da Rússia.
Destaco também os depoimentos de Cândida Ventura e de Santiago Carrillo. A primeira é um caso espantoso, que antes do o ser já o era. Segundo as palavras da própria e do autor, parece que desde sempre (anos 50) já era dissidente, e só se manteve no Partido para ver como é que era, tendo saído unicamente em 1976. Chega mesmo a ser apresentada como agente dupla, não se sabe de quê. Em post anterior já tinha feito referências pouco abonatórias em relação a esta antiga militante do PCP, que na altura da invasão da Checoslováquia pelo Pacto de Varsóvia, em Agosto de 1968, era designada por Flausino Torres, no seu livro póstumo chamado Diário da Batalha de Praga, como a “responsável”. Há uma história pouco clara em relação ao papel desempenhado nessa altura por Álvaro Cunhal. Segundo Cândida Ventura este tê-la-ia avisado de que queriam matar o renovador checo Alexandre Dubcek. Flausino Torres é muito mais peremptório no papel negativo e perfeitamente ditatorial do Álvaro. Acredito muito mais na versão de Flausino Torres.
Quanto a Santiago Carrillo, aparece aqui e acolá, a propósito e a despropósito, fazendo declarações sobre Álvaro Cunhal e o PCP. O autor por possuir essas declarações achou por bem que as tinha que incluir e daí polvilhar o livro com elas.
Restam duas críticas que me parecem importantes. A primeira é a recusa do autor em incluir em notas de rodapé ou no final de cada capítulo a referência de onde foram retiradas as abundantes citações transcritas no livro. Apresenta uma bibliografia final que quanto a mim não é suficiente.
A segunda é a forma descuidada, a carecer de revisão, de algumas referências a datas e a pessoas. O 28 de Maio não foi a 26. O levantamento da Marinha Grande não foi em 1944, mas sim em 34. Do Pacto Germano-Soviético não resultou a anexação da Bielo-Rússia e da Ucrânia. Vasco Gonçalves não foi substituir Otelo no Comando da Região Militar de Lisboa, mas sim Vasco Lourenço. Fala-se da terceira prisão do Álvaro a seguir refere-se a segunda. Buenos Aires em dois parágrafos quase seguidos aparece referida como uma cidade cosmopolita, etc., etc.
Para terminar e para que não digo que só faço crítica negativa, podemos dizer que é um livro agradável de se ler e que facilmente se percorrem as 600 páginas sem especial cansaço ou maçada.
Quanto a mim o livro é bastante desigual, notando-se que o autor conseguiu obter informação sobre alguns factos concretos da vida de Cunhal e que sobre outros teve que passar por cima, recorrendo a descrições vagas sobre o movimento comunista internacional, sobre a URSS ou mesmo sobre o PCP. Podemos mesmo dizer que quando falta tema ao autor este se desloca vários anos para a frente ou para trás na vida do Álvaro, pondo-nos um pouco à nora sobre o seu encadeado.
Os primeiros passos de Cunhal na Juventude Comunista e depois no PCP e os primeiros contactos internacionais são fracos e pouco documentados. O mesmo se verifica com a sua estadia em Paris, nos últimos anos que antecederam o 25 de Abril. A parte mais conseguida é a sua terceira prisão que se verificou em 1949, quando residia clandestino no Luso, a fuga de Peniche, em 1960, a vida em Moscovo, com a companheira e a filha, quando o seu partido e ele próprio resolveram que devia sair definitivamente do país, e depois os tempos pós 25 de Abril, mais fáceis de documentar. Mesmo assim, estes muito falhos de informação sobre as últimas conspirações em que se envolve para recuperar o partido e correr com os renovadores, que ameaçavam a sua visão do mesmo.
Os objectivos do livro são traçar o retrato pessoal e íntimo do biografado, mais do que perspectivar a sua vida política, o que não é inteiramente verdade como se verá mais adiante. Para concretizar aquele desiderato socorre-se dos depoimentos da irmã, Eugénia Cunhal, da mãe da sua filha, Isaura Moreira, da própria filha, Ana Cunhal, e de Cândida Ventura, mas isto é um caso à parte, que será examinado posteriormente. No entanto, já na biografia de Pacheco Pereira, com que esta inevitavelmente terá que se confrontar, essa parte íntima também é relatada através do retrato psicológico do Álvaro feitos por aquele autor, simplesmente este pára na fuga de Peniche, não tendo ainda publicado a parte referente ao nascimento da filha e à vida em Moscovo e em Paris e ao pós-25 de Abril. Por outro lado, aquilo que é apontado como novidade neste livro, já Pacheco Pereira o tinha feito, que é a interpretação dos seus romances, assinados com o nome de Manuel Tiago, como sendo, em parte, autobiográficos.
Pode-se dizer que há uma grande empatia entre o autor e Álvaro Cunhal, apesar de estabelecer uma diferença entre o Cunhal da clandestinidade e o dirigente que vive no exílio, na alta-roda do movimento comunista. Já se sabe que, para Adelino Cunha, o primeiro é muito mais genuíno que o segundo. No entanto, verdade seja dita, Cunhal nunca é apresentado como sedento de poder, que teve que destronar Pavel (Francisco Paula de Oliveira), nos anos 30, ou Júlio Fogaça nos anos 50, para poder ser secretário-geral, como é frequentemente referido. E mais, os anos mais negros do partido, com acusação de assassínios de “traidores”, são aqueles em que Álvaro está ausente, por estar preso.
Há em todo o livro uma clara oposição entre o que foram os propósitos do movimento comunista internacional e da própria URSS e os do Cunhal, enquanto os primeiros são sempre criticados utilizando um certo anti-comunismo de pacotilha, o segundo prossegue com objectivos que, mesmo que sendo errados, são suficientemente nobres para poderem ser seguidos pelo biografado. É esta a parte que de certo modo mais confunde no livro e o torna desse ponto de vista desinteressante e, quer queira ou não o autor, ocupam grande parte da sua espessa biografia, de mais de 600 páginas.
Convém realçar, porque é verdade, que na parte final relativa à ascensão de Gorbachev e depois de Ieltsin o autor não se perde em rodriguinhos elogiosos e dá uma visão bastante desencantada deste último período da URSS e depois já da Rússia.
Destaco também os depoimentos de Cândida Ventura e de Santiago Carrillo. A primeira é um caso espantoso, que antes do o ser já o era. Segundo as palavras da própria e do autor, parece que desde sempre (anos 50) já era dissidente, e só se manteve no Partido para ver como é que era, tendo saído unicamente em 1976. Chega mesmo a ser apresentada como agente dupla, não se sabe de quê. Em post anterior já tinha feito referências pouco abonatórias em relação a esta antiga militante do PCP, que na altura da invasão da Checoslováquia pelo Pacto de Varsóvia, em Agosto de 1968, era designada por Flausino Torres, no seu livro póstumo chamado Diário da Batalha de Praga, como a “responsável”. Há uma história pouco clara em relação ao papel desempenhado nessa altura por Álvaro Cunhal. Segundo Cândida Ventura este tê-la-ia avisado de que queriam matar o renovador checo Alexandre Dubcek. Flausino Torres é muito mais peremptório no papel negativo e perfeitamente ditatorial do Álvaro. Acredito muito mais na versão de Flausino Torres.
Quanto a Santiago Carrillo, aparece aqui e acolá, a propósito e a despropósito, fazendo declarações sobre Álvaro Cunhal e o PCP. O autor por possuir essas declarações achou por bem que as tinha que incluir e daí polvilhar o livro com elas.
Restam duas críticas que me parecem importantes. A primeira é a recusa do autor em incluir em notas de rodapé ou no final de cada capítulo a referência de onde foram retiradas as abundantes citações transcritas no livro. Apresenta uma bibliografia final que quanto a mim não é suficiente.
A segunda é a forma descuidada, a carecer de revisão, de algumas referências a datas e a pessoas. O 28 de Maio não foi a 26. O levantamento da Marinha Grande não foi em 1944, mas sim em 34. Do Pacto Germano-Soviético não resultou a anexação da Bielo-Rússia e da Ucrânia. Vasco Gonçalves não foi substituir Otelo no Comando da Região Militar de Lisboa, mas sim Vasco Lourenço. Fala-se da terceira prisão do Álvaro a seguir refere-se a segunda. Buenos Aires em dois parágrafos quase seguidos aparece referida como uma cidade cosmopolita, etc., etc.
Para terminar e para que não digo que só faço crítica negativa, podemos dizer que é um livro agradável de se ler e que facilmente se percorrem as 600 páginas sem especial cansaço ou maçada.
3 comentários:
Jorge,
Comecei a ler ontem e não sei se chegarei ao fim.
A introdução é tão má que até dói!
Fui depois à procura seleccionada de factos / pessoas sobre as quais tenho informação segura - muita fantasia, muitas omissões...
(Já leste «Sussurros»?)
Provavelmente se me tivesse ficado pelas primeiras páginas teria essa impressão. De início, de facto, o livro é confrangedor, notando-se que o autor anda mesmo à deriva. Depois há alguns acontecimentos um pouco mais bem descritos. Como não conheço pormenores concretos da vida do Álvaro não identifico fantasias ou omissões. A vida em Moscovo é provável que seja um pouco fantasiada. Há também, quanto a mim, o caso espantoso das declarações da Cândida Ventura, até porque existe como contraponto a biografia e o livro de Flausino Torres, que a desmascaram por completo.
Eu sou por vezes um bocado masoquista e entretenho-me com coisas que a maioria passa por cima, por isso provavelmente não vi qualquer referência crítica ainda ao livro, a não ser a tua opinião, que me parece acertada.
Quanto ao Sussurros ainda não li.
Obrigado pelo teu comentário. Ainda bem que há alguém que me lê.
Olha que eu também leio, Jorge! :-) (li muito na diagonal este Cunhal íntimo. Já o Sussurros está parado na página 50...)
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