26/03/2010

O Dia do Estudante de 1962. Um percurso pessoal. II


Estávamos no Dia do Estudante de 1962. Desloquei-me para a Cidade Universitária motivado pelo apelo das Associações de Estudantes. Não me recordo do que vi, nem onde almocei. Sei que telefonei para casa a dizer que não contassem comigo para o almoço, porque outros valores mais altos se levantavam. Esses telefonemas eram sempre difíceis. Se havia uma mãe que cobria os acontecimentos, já a postura do meu pai era mais severa e desencorajava-me sempre a pôr o pé em ramo verde.
Telefonei também para os amigos. Sei que a meio da tarde encontrávamo-nos todos no estádio da Cidade Universitária, penso que há espera do resultado de negociações que se desenrolavam com as autoridades universitárias a propósito da proibição do Dia de Estudante. Era a notícia disso que nos mantinha ali. Recordo-me que para fazer horas um amigo meu, estudante de medicina, nos desafiou a irmos ver os fetos, verdadeiros monstrozinhos, conservados em álcool ou formol que povoavam uma das salas da Faculdade de Medicina. Ainda hoje recordo que a impressão foi bastante desagradável.
Quando saímos soubemos que a polícia estava a carregar sobre os estudantes que estavam no Estádio Universitário. Os jogos dessa tarde tinham acabado e não havia razão para o pessoal se manter ali. Como nunca tinha presenciado uma intervenção policial resolvi, contra a corrente que vinha em sentido contrário, aproximar-me da polícia, queria ver tudo, assistir àquilo a que se chamava uma carga policial. É verdade que esta não foi das mais violentas. Recordo hoje que os polícias só estavam a enxotar os estudantes do Estádio Universitário, à força sim, mas sem grande violência. Presenciei aquilo que desconhecia, parecia o soldado que não tendo participado na batalha, se limita a seguir, a distância prudente, os acontecimentos.
Andei por ali durante um certo tempo, até que surge a informação que o reitor nos convidava a para irmos com ele jantar ao restaurante Castanheira de Moura, que ficava perto da Alameda das Linhas de Torres. É evidente que tudo isto, lido hoje, tem carácter de patranha. Não era possível o reitor fazer esse convite, nem o restaurante tinha capacidade para o bom milhar de estudantes que já se tinha juntado. Parece que a intenção era ser um jantar de convívio entre os dirigentes associativos e o reitor, que era o Marcelo Caetano. No entanto a palavra que perpassou para as massas foi vamos todos para o Castanheira de Moura.
Lembro-me de alguns, mais críticos, dizerem que, depois de um dia glorioso de luta, acabava tudo numa jantarada. De facto nada disso foi o que se passou. A imensa mole começou a descer, e isso tenho a certeza, a na altura Av. 28 de Maio, hoje Av. das Forças Armadas. Em Entrecampos virámos para o Campo Grande e foi ao atravessarmos a Av. do Brasil que a polícia carregou brutalmente sobre a manifestação. Já não tive a curiosidade que manifestei no Estado Universitário, fugi com quantas pernas tinha. No entanto eu e muitos mais, depois de dispersos, continuámos com o objectivo de chegar ao Castanheira de Moura, que de facto alcançamos.

Nessa carga policial o meu amigo do peito Brás, para os amigos Quim João, foi atingido por uma coronhada de um policial. Eu não vi, só relatarei o que ele depois me contou. Foi abrigar-se num café, onde os populares, muito indignados, disseram-lhe que ele se fosse tratar a Santa Maria, para lhes mostrar do que eles eram capazes. O jovem, que não tinha nessa altura mais do que 17 anos, incitado por essas boas recomendações põe-se a caminho. Já se sabe, não foi preciso dizer muito, para ser imediatamente engavetado e ir parar à esquadra, penso eu, do Campo Grande. Passou lá a noite. Foi identificado, o pai foi chamado, o que lhe valeu um raspanete de todo o tamanho e praticamente a proibição de participar em manifestações estudantis. Uma tragédia familiar, como muitas que na altura aconteceram. A partir daí ficou sempre com ficha na PIDE, era considerado “politicamente suspeito”, o que lhe trouxe algumas complicações, mais que não seja com o passaporte. Já depois do 25 de Abril, quando o pediu para se deslocar a França, este não lhe foi dado com a rapidez necessária, porque havia informações negativas a seu respeito. Tivemos, por isso, um herói entre os nossos amigos.

Retomo a chegada ao Castanheira de Moura. O restaurante estava cheio de bons chefes de família que tinha decidido deslocar-se ali para o seu jantar de Sábado à noite. Tal não foi o seu espanto quando viram entrar pela sala fora umas dezenas, não sei se centenas, de estudantes. Mas o mais engraçado, e que hoje recordo, foi o nosso ar de desprezo perante a burguesia a gozar as delícias do regime e nós, pobres estudantes, a sermos vítimas de cargas policiais. Nunca na vida me senti tão revolucionário a humilhar a burguesia. Já se sabe rapidamente apareceu um major da polícia que, com os seus homens, cercaram o Castanheira de Moura. A ordem era para dispersar. Percebi que os dirigentes estudantis ainda tentaram negociar com o major, que depois se tornaria célebre em múltiplas acções de repressão contra os estudantes. Não quero mentir, mas parece-me que era um tal major Maltez.
Lá nos fomos embora com a informação de que nos devíamos reunir, no Domingo de manhã, na sala que a Pró-associação de estudantes de Medicina tinha em Santa Maria, que era onde estava instalada a sua faculdade.

No dia seguinte lá estivemos em Medicina, não me recordo quem falou e o que se decidiu. Provavelmente aquilo que já se esperava que era a greve às aulas e a instauração do Luto Académico. Também nessa manhã, ao fim de algum tempo, lá apareceu a polícia para evacuarmos a sala nuns tantos minutos. Acatámos a ordem. Eu já estava suficientemente informado como actuava a polícia, não senti qualquer curiosidade em saber como agia. Sei que a partir daí entrava sempre em pânico, quando havia perigo e estava em locais fechados, sem possibilidades de fuga. Mesmo mais tarde, em manifestações, quando via que a retirada podia estar comprometida, acontecia-me o mesmo. Como vim a descobrir não era nenhum herói, a polícia tinha conseguido instalar em mim o medo.

Depois seguiu-se um longo fim de Primavera e início de Verão. A luta só termina quando foi estabelecido um acordo, penso que já em Julho. Mas esses pormenores ficarão para outro post.

3 comentários:

Artur disse...

Meu caro Jorge:
O teu relato corresponde à verdade geral dos acontecimentos. Mas há um pormenor que está errado: o major da altura não era o Maltez, este vem mais tarde e era capitão, mas o Horta Veiga que, aliás, aparece numa fotografia à saida da cantina na noite da prisão dos 1500. Apesar de tudo, sempre foi um homem com alguma capacidade de diálogo, coisa que nunca viria a suceder com o Maltez, um tipo do piorio.

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Caro Artur
Mais uma vez as minhas desculpas pelo atraso.
Deves ter toda a razão. Na minha memória permanece a referência ao tal Maltez, que eu penso que tinha bigodinho. Mas mais não sei dizer. Deixo também o assunto para os tais historiadores esmiuçadores.
Um abraço
Jorge

jaime teixeira mendes disse...

Jorge
O Artur tem uma optima memória ou um optimo arquivo. Na verdade o primeiro militar que comandou a policia de choque foi o Horta Veiga. O famigerado capitão Maltez esteva em 1975 em Timor,então já Major, mais propriamente na ilha de Atauro e vangloriava-se de ter chefiado essa policia nas cargas contra os estudantes com atitudes provocstórias. Coisas de Abril
Um abraço
Jaime