10/01/2009

Cuba, mais um aniversário


Sei que venho atrasado, o 50º aniversário da Revolução Cubana já passou. Mas ainda estou dentro do período normal para comemorar esta data redonda.
Na blosgosfera a habitual divisão. As boas almas lá vieram reafirmar a mesma desilusão de sempre, os outros a passagem de mais um glorioso aniversário. Não indico links para não ofender ninguém.
No entanto, não deixo de referir a prosa de Vital Moreira, A revolução exangue, publicada no Público, a 6 de Janeiro, que para além das críticas tradicionais daquele articulista a um regime “comunista”, tem afirmações mentirosas sobre a pobreza de Cuba, – “economicamente, Cuba é hoje um dos países mais pobres da América Latina” – que não se baseiam em qualquer fonte e que resultam do palpite daquele articulista. Sobre este assunto ver o belo artigo que Guilherme da Fonseca-Statter publicou no Comunistas.info, A propósito de mais um Aniversário da Revolução Cubana, em que desmonta com números aquela afirmação aldrabona de Vital Moreira.
Mas deixemos estas pequenas picardias em que eu me costume envolver na blogosfera ou com os media dominantes e apresentemos três pequenas reflexões que me interessa fazer sobre Cuba.

1 - Só haverá um caminho para chegar ao socialismo?

Quando a revolução cubana aconteceu tinha eu quinze anos a caminho dos dezasseis. Vivi com grande alegria aqueles acontecimentos através de uma imprensa censurada. Era a derrota de uma ditadura e a vitória da liberdade e da transformação social. Ditadura e liberdade eu sabia o que eram, transformação social era um conceito mais elaborado, que na altura provavelmente não perceberia a sua amplitude. Contudo, quando se deu o desembarque da Baía dos Porcos, em Abril de 1961, e a crise dos mísseis, em Outubro de 1962, já era um homenzinho e, na última data, já tinha mesmo formação marxista.
Para aqueles que, como eu, pouco tempo depois aderiram ao PCP, a revolução cubana tinha seguido a via-sacra do leninismo, ou melhor, os ensinamentos do marxismo-leninismo e da construção do socialismo. Tinha começado por ser uma revolução anti-imperialista, contra a burguesia sua aliada, que devido à resistência do imperialismo se transforma em revolução socialista, cuja direcção é assegurada primeiro, a partir de Março de 1962, pelo Partido Unido da Revolução Socialista Cubana (PURSC), que junta os fidelistas do Movimento 26 de Julho, o Directório Revolucionário, formado por estudantes revolucionários, e o anterior partido comunista (Partido Popular Socialista) e depois, a partir de Outubro de 1965, pelo seu partido de vanguarda, o Partido Comunista Cubano, que irá comandar até hoje os destinos da Revolução.
Cuba era a ilustração clara de que só havia um caminho para construir o socialismo. Segundo uma declaração antiga de Fidel, que encontrei em textos que recolhi na altura, “o processo revolucionário cubano obedecia a um conjunto de leis, comuns a todos os processos revolucionários. Primeiro a tomado de poder pelas massas, em seguida a destruição do aparelho militar da classe dominante” (Dezembro de 1961). A minha geração comunista acreditou nisto e Cuba confirmava a veracidade deste princípio.
Hoje, passado este tempo, verifico que a opção seguida em Cuba não foi o resultado inevitável de um princípio, que nós acreditávamos que era científico, mas o resultado da própria experiência soviética, que era a única verdadeiramente conhecida, e da pressão dos conselheiros daquele país. Era essa a única via que lhes tinham ensinado nas escolas do Partido.
É evidente que estes passos não foram dados sem dor, nem sem convulsões. Che tinha algumas opiniões diferentes. Fala dos estímulos morais para as tarefas da construção do socialismo, enquanto os soviéticos dos estímulos materiais. Propõe-se a teoria do foco como um conceito revolucionário aplicável a países sob dominação imperialista e com condições no terreno favoráveis à guerra de guerrilhas e defende-se a criação de “um, dois ou três Vietnames”, enquanto que em Moscovo se acredita numa via pacífica para o socialismo. Mas no fundo o caminho seguido por Cuba era indiscutivelmente a confirmação prática de que a construção do socialismo só poderia seguir aquela via.
Posteriormente, a derrota de Allende, no Chile, tornou ainda mais real a nossa convicção teórica.
Simplesmente, os revolucionários sul-americanos aprenderam a lição, depois de anos de ditadura e de derrotas da Revolução, conseguiram com dúvidas, divisões, avanços e recuos, empreender a transformação social criando movimentos de massas que pela via democrática vão tomando o poder e tentando construir novas perspectivas para as suas populações miseráveis. O caso mais conhecido é o Chavez, mas temos Morales na Bolívia, Rafael Corrêa no Equador, Daniel Ortega, parece com algumas contradições, na Nicarágua e mais recentemente Fernando Lugo, no Paraguai. Temos Governos com algum cariz progressista no Brasil, com Lula, na Argentina, no Uruguai e, vá lá, no Chile.
Cuba isolada, escorraçada da Organização dos Estados Americanos, em 1962, está hoje no centro de todas as atenções e é um estado acarinhado e respeitado em toda a América Latina.
Por isso, aquilo que nós pensávamos naqueles anos revelou-se errado, diverso são os caminhos para se chegar ao socialismo e os principais, com todos as contradições e complexidades, passam necessariamente pela participação eleitoral e democrática de grandes massas de cidadãos.

2- Os problemas do desenvolvimento

Numa entrevista à SIC Notícias a propósito deste aniversário, José Fernandes Fafe, que foi nosso embaixador em Havana e escreveu recentemente um belo livro sobre Fidel (Temas e Debates e Círculo dos Leitores, 2008), afirmou que, durante a existência da União Soviética, Cuba vivia menos mal para os padrões da América Latina. Segundo ele a URSS despejava não sei quantos milhões de dólares por dia naquele país. Quando aquela acabou, Cuba, para sobreviver, teve que introduzir as desigualdades, dado que autorizou os portadores de dólares a trocá-los pela moeda local, permitindo assim que aqueles que tivessem parentes nos Estados Unidos ou que vivessem do turismo ou nas suas proximidades pudessem beneficiar dessa troca.
Este problema, aqui ligeiramente aflorado, põe o dilema, que se pôs igualmente à China, com outra dimensão, de que só recorrendo a uma certa desigualdade no caso de Cuba, no caso da China, recorrendo mesmo ao capitalismo mais selvagem se consegue desenvolver um país atrasado.
A experiência soviética não é muito encorajadora. Lenine, para sair da paralisação económica em que se encontrava a URSS, após a guerra civil, recorreu provisoriamente à NEP (Nova Política Económica), que permitiu a venda livre dos produtos da terra e o enriquecimento individual dos camponeses com maiores propriedades (kulaks). Estaline cortando com isto, resolveu fazer a colectivização forçada dos campos e iniciou com os camponeses que fugiram para as cidades, e alguma mão-de-obra prisioneira a industrialização acelerada daquele país. Os resultados foram positivos durante um período razoável, mas foram obtidos à custa de um enorme sofrimento das populações. Podemos afirmar que a experiência soviética nada tinha de socialismo, como Marx o entendia e como nós hoje o propomos.
Por isso, até ao presente, o socialismo não teve possibilidades de demonstrar ser capaz de desenvolver sociedades humanas atrasadas. Apesar de no caso da URSS a ter transformado num país moderno e na China ter permitido retirar milhões de camponeses do nível de subsistência mais miserável, simplesmente nada disto tem a ver com o socialismo. As experiências da América Latina não são ainda conclusivas, nem garantem que sejam capazes de retirar massas humanas do nível de subsistência, mas têm permitido aumentar o nível de vida de algumas populações mais desfavorecidas.

3 – Os problemas da transição

Todos os críticos dos regimes de socialismo real asseiam para que estes passem a ser democracias “tout court” e que garantam o respeito pelos direitos humanos. Nestes anseios há muita hipocrisia. Esquecem deliberadamente que até ao presente os regimes que substituíram o socialismo-real enveredaram pelo capitalismo mais desigual, criando sociedades que só por brincadeira se pode dizer que garantem os direitos humanos. Quando milhares de cidadãos daqueles países são obrigados a emigrar para o Ocidente porque perderam de imediato o seu nível mínimo de subsistência, mal vão os direitos humanos. Mais, quando de repente aparecem, em meia dúzia de anos, como foi o caso da Rússia, multimilionários com as fortunas como as que hoje são atribuídas a alguns dos donos de clubes de futebol, temos que reconhecer que alguma coisa vai mal. E vai de facto, a experiência de transição, excepto em países que já tinham uma vida democrática anterior, caso da Checoslováquia, tem sido má, tem permitido criar profundas desigualdades e transformado países que dantes eram dependentes de uma grande potência, a URSS, a dependerem de outra, os EUA. A história é triste e não pode servir para os seus defensores fazerem grandes encómios.
O problema em Cuba tem contornos semelhantes. Como se portariam os cubanos de Miami desejosos de vingança contra os que ficaram em Cuba? Que aconteceria a todos os grandes proprietários que anseiam regressar às suas terras? E aos americanos que deveriam querer ressarcir-se dos seus investimentos passados? Estes aspectos da transição, que as boas almas acreditam que se resolvem facilmente fazendo eleições livres, dando liberdade de imprensa e permitindo a organização de partidos, acabam normalmente muito mal, com violações por vezes muito mais gritantes dos direitos humanos.
Não comparem com a transição em Portugal. Nos casos referidos anteriormente há de facto uma mudança de regime económico importante, coisa que as nossas boas almas ignoram, que modifica profundamente a estrutura social. Em Portugal, apesar de ter havido algumas alterações sociais, os donos da bola, as classes dominantes de sempre, passados os primeiros apertos e da emigração para o Brasil ou para Espanha, regressam para tomar posse do que perderam e, em alguns casos, em situações até mais favoráveis.
Na China o poder conseguiu controlar a situação de transição. Recorreu mesmo uma situação extremamente repressiva, Tiananmen, no entanto, se isso não tivesse sucedido talvez a China perdesse o comboio do crescimento económico que tem vindo a conhecer.
Cuba com as alterações que o próprio regime for introduzindo, com o reforço da componente progressista em toda a América Latina, com a possível, mas não certa, alteração da liderança em Washington, irá provavelmente corrigindo alguns das piores defeitos do passado e permitir um fluir democrático das suas instituições.

Estas três reflexões sobre Cuba foram escritas um pouco ao correr da pena, com a ajuda aqui e acolá da Wikipédia, e de textos que fui desenterrar à minha gaveta de memórias, não pretende ser uma análise histórica e económica da realidade. São simples apontamentos pessoais que respondem a algumas ideias feitas e que os de sempre considerarão revisionistas e as boas almas como justificadoras da ditadura de partido único e da violação dos direitos humanos. A todos respondo que metam a mão na consciência e aos últimos que não se pode ser tolerante para com Israel e tão crítico para com este regime.

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