Ao consultar na net a edição portuguesa do Le Monde Diplomatic encontrei referência a uma conferência internacional, que eu já conhecia, mas na qual não pude infelizmente participar, sobre o Maio de 68 e que teve lugar a 11 e 12 de Abril passados.
Sei que dessa conferência resultaram imensas entrevistas aos participantes estrangeiros, incluindo uma a Daniel Bensaïd, que irei posteriormente comentar, e que ela serviu de fonte de inspiração a muitos jornalistas para as suas reportagens sobre o Maio de 68.
Uma das primeiras comunicações apresentadas foi a de Fernando Rosas, que se intitulava: Teses sobre a geração dos anos 60 em Portugal e a questão da hegemonia e cujo resumo, que constava do programa, era o seguinte: “pretende-se discutir o papel que o "Maio de 68" em Portugal, ou seja, a contestação estudantil de 1969, desempenhou na radicalização da luta política em geral e na alteração das relações de hegemonia em favor das mundivisões marxizantes e revolucionárias na sociedade portuguesa da época.”
Fiquei bastante interessado no tema e tentei ver se na net havia o texto completo da comunicação. Eu próprio, em reflexões pessoais, e na perspectiva de um estudante comunista, já tinha dado a minha visão do que tinha sido a influência do Maio de 68 no movimento estudantil desses anos.
Mas, o que despertou mais o meu interesse foi, no resume da sua comunicação, a expressão “a contestação estudantil de 1969” provocou “alteração das relações de hegemonia em favor das mundivisões marxizantes e revolucionárias na sociedade portuguesa da época.”
Com a audácia de alguém que não assistiu à conferência, queria no entanto sublinhar que se isto é verdade, houve à época um outro conjunto de circunstâncias, políticas e culturais, que permitiu a alteração das relações hegemónicas a favor de uma modificação revolucionária da sociedade portuguesa e com contornos marxistas, que teve evidentemente reflexos no pós-25 de Abril, que não seria o que foi se não tivesse o terreno já previamente adubado.
Mas comecemos pelo princípio.
Num filme que passou recentemente na RTP I, sobre Humberto Delgado e as eleições de 1958, muito discutível pela selecção dos depoimentos a que recorre – não há nenhum comunista a falar sobre aquelas eleições –, Lauro António, o seu realizador, vai ouvir a opinião de Marcelo Rebelo de Sousa. Este, com grande ligeireza opinativa, refere que a queda do salazarismo teria começado com aquelas eleições. Victor Dias no seu blog já comentou devidamente estas declarações. No entanto, gostaria de acrescentar, que os tempos em que se desenrolaram aquelas eleições, que corresponderam ainda a um Portugal arcaico, nada tiveram a ver com o clima político e cultural criado durante o marcelismo e que de facto correspondeu ao fim do regime fascista. Ou seja, em 58 era ainda impossível descortinar qualquer hegemonia das “mundivisões marxizantes e revolucionárias” na sociedade portuguesa. É bom não esquecermos que Salazar ainda em 1961, com os acontecimentos no Norte de Angola e a sua exigência de ir para lá e em força, tinha conseguido de novo a mobilização de certas camadas populacionais, do campesinato a certa pequena-burguesia citadina. Só posteriormente, com o arrastar da guerra e a emigração para França da grande base de apoio do clericalismo e do salazarismo, se começa a verificar uma nova correlação de forças desfavoráveis à ditadura e à criação de uma cultura de resistência à mobilização para a guerra colonial.
Se o Maio de 68 teve sem dúvida efeitos na esquerdização da juventude e por reflexo na sociedade portuguesa, é evidente que não foi o único evento que provocou essas alterações. A queda de Salazar e a nomeação de Marcelo, tendo provocado algumas ilusões em certa “oposição”, possibilitou ao mesmo tempo o seu revigoramento. Basta pensar que as eleições para Assembleia Nacional, que tiveram lugar em 69, com o reforço do trabalho de base promovido pela CDE, nessa altura uma coligação de comunistas e católicos progressistas e de “outros democratas”, como se dizia então, teriam sido impossíveis nos anos de chumbo de Salazar. Basta comparar com as anteriores, de 65.
Mas, mais do que isso foi todo o clima cultural e politico criado na época. A conquista dos sindicatos fascistas pelos trabalhadores e a formação da Intersindical foi um facto de enorme importância. Quem esquece as manifestações à hora do almoço dos bancários, essa classe tão recuada, a propósito da prisão de um dos seus dirigentes, o Daniel Cabrita.
A criação de cooperativas culturais e livreiras, onde se procedia à realização de colóquios e à venda de livros, muitas vezes proibidos. A realização dos Congressos Republicanos em Aveiro. A manutenção sobre formas legais e semi-legais da CDE durante todo esse período.
Mas também o que se lia. O próprio panorama editorial se modificou: editou-se Lenine, dando-lhe o nome de baptismo, Ulianov. O revigoramento do jornal República e de grande parte da informação regional, como o Jornal do Fundão, o Notícias da Amadora, e o Comércio do Funchal. Revistas como a Seara Nova, a Vértice e o Tempo e o Modo tiveram grandes tiragens.
As canções que se ouviam: José Afonso e Adriano, mas a seguir todos os baladeiros. Até já nem o Festival da Canção escapava, com as letras do Ary dos Santos.
É a tudo isto que chamo as alterações de relação hegemónica que se deram a favor da esquerda, das mudanças revolucionárias, se quiser do anti-fascismo, que se verificaram nas vésperas do 25 de Abril e a que os militares não ficaram imunes, no Continente e nas colónias. Em 1970, dá-se a incorporação dos expulsos da Universidade de Coimbra pelo Governo devido à crise de 69. Em Abril de 1970, na minha incorporação, fui encontrar muita desses estudantes, o que necessariamente ia ter reflexos nas companhias que partiam para África.
E aqui entronca outra das discussões que se travou aqui há tempos na blogosfera a propósito de um artigo de Pacheco Pereira sobre a guerra colonial. Se todos os que nos opúnhamos àquela guerra tivéssemos desertado, a nossa intervenção junto dos militares no activo tinha sido insignificante e não teria depois a importância que veio a ter na sua insubordinação e adesão a muito dos princípios da própria luta de libertação dos povos coloniais.
Quero com tudo isto dizer que houve uma alteração hegemónica cultural e política, que se verificou a partir de 69, que apressou o fim do marcelismo, motivou um grupo de militares da baixa patente e permitiu a explosão revolucionária do pós-25 de Abril.
Por tudo isto, considero que os problemas da hegemonia cultural e política deveriam ser hoje um tema central do nosso debate político contemporâneo.
Sei que dessa conferência resultaram imensas entrevistas aos participantes estrangeiros, incluindo uma a Daniel Bensaïd, que irei posteriormente comentar, e que ela serviu de fonte de inspiração a muitos jornalistas para as suas reportagens sobre o Maio de 68.
Uma das primeiras comunicações apresentadas foi a de Fernando Rosas, que se intitulava: Teses sobre a geração dos anos 60 em Portugal e a questão da hegemonia e cujo resumo, que constava do programa, era o seguinte: “pretende-se discutir o papel que o "Maio de 68" em Portugal, ou seja, a contestação estudantil de 1969, desempenhou na radicalização da luta política em geral e na alteração das relações de hegemonia em favor das mundivisões marxizantes e revolucionárias na sociedade portuguesa da época.”
Fiquei bastante interessado no tema e tentei ver se na net havia o texto completo da comunicação. Eu próprio, em reflexões pessoais, e na perspectiva de um estudante comunista, já tinha dado a minha visão do que tinha sido a influência do Maio de 68 no movimento estudantil desses anos.
Mas, o que despertou mais o meu interesse foi, no resume da sua comunicação, a expressão “a contestação estudantil de 1969” provocou “alteração das relações de hegemonia em favor das mundivisões marxizantes e revolucionárias na sociedade portuguesa da época.”
Com a audácia de alguém que não assistiu à conferência, queria no entanto sublinhar que se isto é verdade, houve à época um outro conjunto de circunstâncias, políticas e culturais, que permitiu a alteração das relações hegemónicas a favor de uma modificação revolucionária da sociedade portuguesa e com contornos marxistas, que teve evidentemente reflexos no pós-25 de Abril, que não seria o que foi se não tivesse o terreno já previamente adubado.
Mas comecemos pelo princípio.
Num filme que passou recentemente na RTP I, sobre Humberto Delgado e as eleições de 1958, muito discutível pela selecção dos depoimentos a que recorre – não há nenhum comunista a falar sobre aquelas eleições –, Lauro António, o seu realizador, vai ouvir a opinião de Marcelo Rebelo de Sousa. Este, com grande ligeireza opinativa, refere que a queda do salazarismo teria começado com aquelas eleições. Victor Dias no seu blog já comentou devidamente estas declarações. No entanto, gostaria de acrescentar, que os tempos em que se desenrolaram aquelas eleições, que corresponderam ainda a um Portugal arcaico, nada tiveram a ver com o clima político e cultural criado durante o marcelismo e que de facto correspondeu ao fim do regime fascista. Ou seja, em 58 era ainda impossível descortinar qualquer hegemonia das “mundivisões marxizantes e revolucionárias” na sociedade portuguesa. É bom não esquecermos que Salazar ainda em 1961, com os acontecimentos no Norte de Angola e a sua exigência de ir para lá e em força, tinha conseguido de novo a mobilização de certas camadas populacionais, do campesinato a certa pequena-burguesia citadina. Só posteriormente, com o arrastar da guerra e a emigração para França da grande base de apoio do clericalismo e do salazarismo, se começa a verificar uma nova correlação de forças desfavoráveis à ditadura e à criação de uma cultura de resistência à mobilização para a guerra colonial.
Se o Maio de 68 teve sem dúvida efeitos na esquerdização da juventude e por reflexo na sociedade portuguesa, é evidente que não foi o único evento que provocou essas alterações. A queda de Salazar e a nomeação de Marcelo, tendo provocado algumas ilusões em certa “oposição”, possibilitou ao mesmo tempo o seu revigoramento. Basta pensar que as eleições para Assembleia Nacional, que tiveram lugar em 69, com o reforço do trabalho de base promovido pela CDE, nessa altura uma coligação de comunistas e católicos progressistas e de “outros democratas”, como se dizia então, teriam sido impossíveis nos anos de chumbo de Salazar. Basta comparar com as anteriores, de 65.
Mas, mais do que isso foi todo o clima cultural e politico criado na época. A conquista dos sindicatos fascistas pelos trabalhadores e a formação da Intersindical foi um facto de enorme importância. Quem esquece as manifestações à hora do almoço dos bancários, essa classe tão recuada, a propósito da prisão de um dos seus dirigentes, o Daniel Cabrita.
A criação de cooperativas culturais e livreiras, onde se procedia à realização de colóquios e à venda de livros, muitas vezes proibidos. A realização dos Congressos Republicanos em Aveiro. A manutenção sobre formas legais e semi-legais da CDE durante todo esse período.
Mas também o que se lia. O próprio panorama editorial se modificou: editou-se Lenine, dando-lhe o nome de baptismo, Ulianov. O revigoramento do jornal República e de grande parte da informação regional, como o Jornal do Fundão, o Notícias da Amadora, e o Comércio do Funchal. Revistas como a Seara Nova, a Vértice e o Tempo e o Modo tiveram grandes tiragens.
As canções que se ouviam: José Afonso e Adriano, mas a seguir todos os baladeiros. Até já nem o Festival da Canção escapava, com as letras do Ary dos Santos.
É a tudo isto que chamo as alterações de relação hegemónica que se deram a favor da esquerda, das mudanças revolucionárias, se quiser do anti-fascismo, que se verificaram nas vésperas do 25 de Abril e a que os militares não ficaram imunes, no Continente e nas colónias. Em 1970, dá-se a incorporação dos expulsos da Universidade de Coimbra pelo Governo devido à crise de 69. Em Abril de 1970, na minha incorporação, fui encontrar muita desses estudantes, o que necessariamente ia ter reflexos nas companhias que partiam para África.
E aqui entronca outra das discussões que se travou aqui há tempos na blogosfera a propósito de um artigo de Pacheco Pereira sobre a guerra colonial. Se todos os que nos opúnhamos àquela guerra tivéssemos desertado, a nossa intervenção junto dos militares no activo tinha sido insignificante e não teria depois a importância que veio a ter na sua insubordinação e adesão a muito dos princípios da própria luta de libertação dos povos coloniais.
Quero com tudo isto dizer que houve uma alteração hegemónica cultural e política, que se verificou a partir de 69, que apressou o fim do marcelismo, motivou um grupo de militares da baixa patente e permitiu a explosão revolucionária do pós-25 de Abril.
Por tudo isto, considero que os problemas da hegemonia cultural e política deveriam ser hoje um tema central do nosso debate político contemporâneo.
1 comentário:
ler todo o blog, muito bom
Enviar um comentário