A propósito da publicação do livro de Mário Soares, Um Político Assume-se, que mereceu uma referência crítica da minha parte, e dos comentários de alguns leitores sobre o posicionamento político do PS, resolvi reler o livro de Rui Mateus, Contos Proibidos, Memórias de um PS Desconhecido (Publicações Dom Quixote, 1996).
Este livro tem sido considerado nalguns blogs como um livro maldito. Não só porque nunca foi reeditado, como consta que a sua edição se esgotou rapidamente, talvez comprado pelo principal visado no mesmo: Mário Soares. Eu já o tinha lido, simplesmente tinha sobre ele uma recordação muito imprecisa.
A história é espantosa, não só porque o autor nos descreve as partes mais sombrias da formação do PS e da sua inserção na vida política portuguesa no pós-25 de Abril, mas principalmente o papel que Mário Soares desempenhou, quer durante o PREC, quer nos primeiros governos constitucionais, quer ainda na sua eleição para Presidente da República.
A parte menos interessante do livro é aquela que é dedicada à história do processo judicial do fax de Macau, que envolveu o Governador da altura daquela ex-colónia portuguesa, Carlos Melancia, e o autor do livro e mais alguns dos colaboradores da Eumaudio, empresa ligada ao PS e a Mário Soares, que se dedicava aos meios audiovisuais. É uma auto-justificação, que na altura poderia ter muito interesse para quem seguia o processo, mas que hoje perdeu toda a actualidade perante escândalos de corrupção de muito maiores dimensões.
Há em todo o livro um ataque ao carácter do visado, mostrando a sua pouca fidelidade aos amigos que não o seguem acriticamente e uma ânsia de poder desmesurada, sacrificando tudo para o obter. Apesar disto ser relevante, pode também resultar de uma vingança pessoal do autor, que se sentiu traído durante todo o processo do fax pelo companheiro de longa data. Por isso, aquilo que considero mais significativo no livro são os factos descritos, apesar de nem todos me parecerem verdadeiros.
O autor assume-se desde o princípio como um feroz anti-comunista, atlantista, amigo dos americanos e da CIA, seguindo desse modo as pisadas de Mário Soares. Mas o que é mais espantoso é que, para o autor, Mário Soares, sentindo a sua vaidade ferida, só se tornou um verdadeiro anti-comunista quando o não deixaram subir à tribuna, onde estava o presidente da República, Costa Gomes, o Governo, chefiado por Vasco Gonçalves, e a direcção da CGTP, na já distante comemoração do 1º de Maio de 1975, no estádio do mesmo nome. Toda a estratégia da luta contra a unicidade sindical, um só sindicato para cada um dos sectores, foi chefiada por Salgado Zenha que para o efeito escreveu um artigo no Diário de Notícias e fez um discurso no Pavilhão dos Desportos, em Janeiro de 1975, antes pois da tal “conversão” de Mário Soares. O autor manifesta grande admiração por aquele ex-dirigente do PS. Mas a principal revelação é de atribuir a Mário Soares a entrada do PCP no Primeiro Governo Provisório, o de Palma Carlos. Isto porque Mário Soares queria justificar a sua ida para a pasta dos Negócios Estrangeiros com a presença do PCP no Governo. Apesar de hoje dizer o contrário, o autor acha que Mário Soares considerava que o PS estava numa posição de subalternidade em relação ao PCP. Rui Mateus, devido ao seu anti-comunismo, critica os encontros, em Paris, entre Mário Soares e Álvaro Cunhal antes do 25 de Abril e os acordos então estabelecidos.
É evidente que a oposição de Mário Soares ao PCP data de muito mais cedo do que acontecimento referido pelo autor, um perfeito disparate, que visa apoucar Mário Soares, tentando provar que, ao contrário do que aquele afirmava, não era tão anti-comunista como propagandeava. Álvaro Cunhal no seu livro A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (Edições Avante!, 1999, pag. 164) relata negativamente a posição de Mário Soares, comprovadas por declarações bastante posteriores, em relação ao General Spínola e à manifestação da “maioria silenciosa” promovida por este a 28 de Setembro de 1974. Eu próprio, recordando a época, lembro-me bem das fricções, logo a seguir à demissão de Spínola, entre o PS, de Mário Soares, e o PCP a propósito da manutenção como frente unitária do MDP/CDE e da oposição daqueles à sua participação no Governo chefiado por Vasco Gonçalves.
Quanto ao 25 de Novembro de 1975, vem mais uma vez à baila quem comandou a resistência à tentativa insurreccional verificada naquela dia. Mário Soares assume que foi ele. Ramalho Eanes contesta. Para o autor foi principalmente um tal “Plano Callaghan”. - James Callaghan era na altura Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo britânico e dirigente trabalhista. - Plano esse que envolvia os serviços secretos ingleses e que contaria, segundo Rui Mateus, com a colaboração da CIA, coisa que Mário Soares nunca admitiu, apesar de fazer referência várias vezes àquele plano estabelecido com os ingleses. Mas, acima de tudo, considera o autor que foi a pressão internacional, principalmente dos partidos socialistas e sociais-democratas que estavam no poder na Europa ocidental, que, juntamente com os americanos, se exerceu sobre Moscovo para que o PCP se retirasse do golpe, já que não era admissível que, num país da NATO, os comunista tomassem o poder pela força. Isto segundo a linguagem do próprio autor.
É mesmo citado um escrito de Will Brandt (pag.75) em que este afirma que sem “o envolvimento internacional pela democracia, a tentativa de golpe em Lisboa, em Novembro de 1975, não teria tão facilmente sido desmobilizada”. Referia-se a um Comité de Amizade e Solidariedade com a Democracia e o Socialismo em Portugal que reuniu pela primeira vez perto de Estocolmo, em 2 de Agosto de 1975, e era composto pelos partidos socialistas e sociais-democratas europeus.
É evidente que na descrição que faz dessa tentativa de golpe há uma grande dose de mentira. Pois tenta relacionar acontecimentos anteriores, como o cerco do Ministério do Trabalho ou da Assembleia Constituinte ou de uma pretensa Greve Geral, marcada para 25 de Novembro, de eu nunca ouvi falar, com os acontecimentos dessa data. Depois afirma que na véspera já “havia milícias comunistas nas ruas de Lisboa para controlar pessoas e bens”, isto a propósito de nesse dia ter atravessado aquela cidade com um pacote com dinheiro para Mário Soares, que se deslocaria para o Porto com o “conforto” do conteúdo do envelope. Cidade a partir da qual, com apoio dos serviços secretos de Sua Majestade e dos americanos, pretendia lançar uma operação sobre Lisboa, se se estabelecesse nela a “comuna” que se dizia que o PCP e a extrema-esquerda pretendiam implantar.
Segundo o autor, um plano semelhante foi anos depois executado pelos americanos no Panamá, contra o general Noriega. O PCP percebendo que a situação internacional não lhe era favorável teria recuado.
A história é fantasiosa, mas tem um fundo de verdade. Por um lado, a quantidade enorme de dinheiro, como o autor prova, exibindo recibos, que foram entregues a Mário Soares e ao PS nesses dias. Por outro, o envolvimento de serviços secretos ocidentais nessa tramóia, com a cumplicidade de Mário Soares. É evidente que ainda há alguns aspectos obscuros que não foram esclarecidos em relação ao 25 de Novembro, mas não restam para mim dúvidas da actividade pouco clara de Mário Soares nessa data.
Terminaria esta primeira parte do meu post com uma citação de Malraux, transcrita pelo autor (nota da pag.75), em que este afirma que a situação em Portugal após o 25 de Novembro como sendo a primeira vitória dos “mencheviques sobre os bolcheviques”. Grande mentira, bastando lembrar, sem precisar de grande pesquisa histórica, a vitória da social-democracia alemã, em Janeiro de 1918, que, com a tropa por ela comandada, os Freikorps, derrotou em Berlim os espartaquistas (futuro Partido Comunista Alemão) insurrectos e assassinou Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, seus principais dirigentes.
Sem comentários:
Enviar um comentário