21/10/2011

Mais uma vez a Guerra Civil espanhola – II

O prometido é devido. Apesar do atraso e da premência do desastre nacional remeto-vos para a segunda parte do post sobre a Guerra Civil espanhola.

Começo por referir, porque acho que se integra bem neste post, o livro sugerido num comentário anteriormente feito à primeira parte deste trabalho.

Estou e a aludir ao livro de Antony Beevor sobre a Guerra Civil espanhola, que em português leva o título de A Guerra Civil de Espanha (Bertrand Editora, 2006), já que o título original, citado no comentário, é The Batle for Spain, mantido na tradução brasileira da obra: A Batalha pela Espanha. É interessante saber que este livro foi reescrito e ampliado pelo autor em 2005, depois de ter acesso aos arquivos da ex-União Soviética. A primeira edição era de 1985, se me lembro bem do que li, e da qual foi feita uma tradução pela Livros do Brasil. Fiquei a saber tudo isto consultando, como é hábito, o motor de pesquisa da Google, o que me atrasou na redacção deste post.

Não li o livro, nem ainda o comprei, mas penso pelo que li sobre ele que se integra numa corrente revisionista que pretende deslegitimar a acção da República. Uma das conclusões do livro é de que se a República vencesse se tornaria numa ditadura comunista igual àquelas que posteriormente vieram a existir no Leste europeu, depois de 1945. Parece-me esta conclusão perfeitamente disparatada, porque é não perceber nada do que foi a acção da URSS antes da II Guerra Mundial e principalmente em Espanha, defendendo a segurança colectiva, que envolvia alianças com a Inglaterra e a França contra a Alemanha, daí ser impensável o apoio à revolução socialista, visto que a mesma impediria qualquer aliança com aqueles dois países. É esta a acusação base que é feita a Estaline por todos os movimentos à esquerda do PCE (anarquistas e POUM). Por outro lado, é não ter em conta o que se passaria durante a II Guerra Mundial, com as alterações que a mesma trouxe à reordenação da Europa. Provavelmente, neste caso, Salazar não se livraria de entrar na Guerra.

Pelo que li, igualmente nas recensões a este livro, Antony Beevor também não é nada meigo para com os franquistas, o que motivou alguma contestação critica (ver aqui, aqui  e aqui) da direita espanhola, onde esta última edição saiu originalmente. Num delicioso vídeo de um reaccionário brasileiro, que encontrei no YouTube, este livro também é citado, entre a numerosa literatura anticomunista que refere, aqui para provar que houve matança de gente do clero, mas acrescentando no início que é um livro esquerdista, porque, penso eu, não toma partido pela cruzada de Franco contra os ateus comunistas.

Escrito isto, que vai um pouco ao arrepio aceitação generalizada desta obra de Beevor, gostaria de voltar ao livro que aqui nos trás, este sim já por mim lido recentemente. Estamos a falar do livro de Stanley G. Payne, A Guerra Civil de Espanha, a União Soviética e o Comunismo, de 2006, da Editora Ulisseia.

Este livro insere-se igualmente na corrente historiográfica que pretende deslegitimar o Governo da República. Isto porque os defensores deste Governo, no fundo os partidos que compunham a Frente Popular, que ganhou as eleições em Fevereiro de 1936, - dela não constavam os anarquistas, por ser um dos seus princípios base não participar em eleições “burguesas” - sempre desejaram uma revolução ou um governo só da esquerda e ao ganhar as eleições apropriaram-se do poder como se pudessem de imediato pôr em prática as suas ideias. Já se sabe que isto é a visão de uma autor apoiante de Bush e neo-conservador (ver aqui), que tem uma visão enviesada do que é a democracia: qualquer governo que seja de esquerda e que deseje uma real transformação social, o que nem se pode dizer que estivesse a suceder em Espanha antes do golpe militar (Julho de 1936) é anti-democrático, os governos de direita, mesmo que sejam ditaduras, são sempre democracias, pois estão a fazer progressos para se democratizarem. É por isso que imediatamente acusaram Allende de pretender instalar no Chile uma ditadura comunista e preferiram Pinochet, esse “grande democrata”, a Allende.

Para compreender as teses de Stanley Payne remeto-vos para uma descrição que é feita na Wikipedia  relativamente ao pensamento revisionista sobre a Guerra civil espanhola a propósito da biografia de uma dos seus mais famosos defensores, Pio Moa, que foi apoiado, nos debates travados em Espanha sobre este assunto, por Payne. A tradução do texto foi automática, com correcções minhas:

1. Uma parte substancial da esquerda (os anarquistas, PCE, ERC - Esquerra Republicana de Catalunha e do sector de PSOE, liderado por Largo Caballero ) teve um carácter marcadamente antidemocrático, uma vez que considerava a República como um mero trampolim no caminho para seu objectivo final o da Revolução Social.


2. Este sector da esquerda espanhola organizou a revolta de Outubro de 1934.

3. As eleições de 1936 ocorreram numa república que não era democrática, A Frente Popular venceu por estreita margem de votos (mas com muito mais lugares no parlamento), devido a certos arranjos obscuros, como os denunciados pelo então Presidente da República, Niceto Alcalá Zamora , e corroborados, segundo Moa, pelas memórias de Azaña, Alcala-Zamora e Madariaga.

4. A situação de violência na rua e o real fervor revolucionário originou uma resposta simétrica em sectores da direita , a que se juntou uma parte de oficiais do Exército, desembocando toda esta escalada de violência - que culminou no assassinato por membros da Guarda de Assalto do deputado e líder da oposição, José Calvo Sotelo - na revolta de 18 de Julho de 1936 . Esta seria uma reacção desesperada de uma direita que não espera mais tempo, como a esquerda da Frente Popular vinha anunciado há anos.

Eu não podia traduzir melhor o pensamento de Stanley Payne expresso neste livro. Penso que Antony Beevor não pensa de igual modo, mas temo, pelas recensões que li, que apesar de ser muito mais crítico para com os franquistas, não deixa de deslegitimar a República, antevendo, se ela vencesse, um cenário de terror.

Falando mais concretamente do livro diria que o pior são as interpretações do autor relativamente à República e às suas intenções, pois que a descrição das acções do PCE e das ajudas da URSS e a intervenção dos agentes policiais que esta enviou para Espanha parecem-me bem fundamentadas e provavelmente a corresponderem à realidade. O problema é sempre do parti-pris de que parte.

Gostaria de sublinhar um dos aspectos que mais me chocou, foi a descrição daquilo a que se chama o “biénio negro” da República, ou seja os dois anos (1934-36) em que a direita governou. Como se sabe, em Outubro de 1934 ouve uma revolta dos mineiros asturianos que foi derrotada, este mesmo ano é referido num dos pontos anteriormente transcritos a propósito do pensamento de Pio Moa. Ora tanto Stanley Payne, como pelos vistos Moa, consideram que nesse Outubro ouve uma tentativa insurreccional generalizada, com responsabilidades do PSOE de Largo Caballero e da Generalitat da Catalunha. E que, por isso, a esquerda tinha-se antecipado à direita nos golpes revolucionários. Estive a ler este período tanto na obre de Preston, como na Hugh Thomas, qualquer deles referido por mim no post anterior, e verifiquei que se é um dado indiscutível que houve uma revolta dos mineiros asturianos, que foi reprimida por tropas da Legião sedeadas em Marrocos, já o resto da revolta generalizada está envolta em grande bruma e não é certo que tivesse existido, com as características que Payne lhe aponta.

Mas mais grave ainda é Payne achar o Governo da direita nada fez para eliminar as organizações revolucionárias que tinham organizado a insurreição e ainda mais acrescenta: “A repressão por parte da República, em 1934-35, foi de uma suavidade sem precedentes na história moderna da Europa Ocidental – mais suave do que em qualquer estado liberal ou semiliberal da Europa dos séculos XIX ou XX…” (pag.84). E que exemplos ele usa de repressão: a da Comuna de Paris, a da revolução de 1905-07 na Rússia dos czares, a da revolução na Alemanha, em1918-19, e, um caso que eu desconhecia, a do “golpe comunista” na Estónia “democrática”, em 1924. E termina esta página brilhante assim: “o falhanço da repressão dos revolucionários não constitui um benefício para a democracia liberal em Espanha, e pode ter apressado a sua destruição. Atroz como foi, a repressão dos communards de Paris em 1871, por exemplo, pode ter ajudado a estabilização inicial da Terceira República da classe média francesa, durante as décadas de 1870 e 1880”. Depois cita um caso finlandês de 1918, com muita repressão à mistura, que só ajudou a consolidar a democracia naquele país. Esta página, a 85, é um manual de como os estados devem lidar com as organizações revolucionárias e como as devem reprimir, que qualquer pessoa que se considere da esquerda não pode ler sem sentir um profundo horror.

Por estas razões custa-me perceber porque é que João Tunes, do blog Água Lisa, na recensão que faz a este livro o recomenda vivamente. Mesmo que haja um conjunto importante de informações sobre a acção do PCE e da URSS, dirigida por Estaline, tem que previamente se alertar as pessoas para a reccionarices anteriormente apontadas. Por outro lado, o ódio a Estaline e a todo o movimento comunista internacional da altura leva-o a fazer uma descrição da Guerra Civil espanhola que, cabe perfeitamente no tipo de revisionismo histórico que eu apontei em cima. Antony Beevor escreve, parece que logo no início do seu livro, que uma das primeiras vítimas desta guerra teria sido a verdade. João Tunes não foge deste ponto de vista, agravando-o. Por exemplo, Preston dedica o seu livro às Brigadas Internacionais, apesar de criticamente apreciar a acção de Estaline. João Tunes devido aos seus preconceitos não é capaz de olhar criticamente para acção dos comunistas, sem ter que ver em cada um deles a mão de Moscovo, ou seja, a mão de Estaline.

2 comentários:

packard disse...

Embora não concorde com a tua perspectiva, li com gosto o teu vasto comentário sobre o livro do Beevor.

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Caro Packard
Este post não é uma resposta à tua sugestão de leitura do livro do Beevor, nem uma crítica, simplesmente como falaste no livro e citaste a edição inglesa, eu, que no outro dia entrei numa livraria e vi a portuguesa, achei que devia fazer uma pesquisa sobre a mesma. E nessa pesquisa fui encontrando respostas àquilo que eu pensava do Beevor e a uma recordação que tinha de já ter lido, não sei onde, qualquer recensão crítica. Por outro lado, encontrei uma ampla aceitação do livro e foi isso que motivou a minha referência ao mesmo.
Um abraço