16/03/2010

O fascismo quotidiano II


Podem os comentadores acusar-me de botar opinião sem ler o livro a História de Portugal, de Rui Ramos, e de julgá-lo unicamente pela opinião que tenho do seu autor. É verdade que isso sucede, simplesmente a parte que li referente à repressão no regime fascistas deixou-me tão incomodado que achei por bem vir demonstrar que não basta provar por números que a repressão até nem foi muito elevada, quando o que contava era o medo que a população ia interiorizando relativamente ao fascismo e às suas práticas repressivas.
Vem também isto a propósito de declarações que o historiador em questão tem feito relativamente à República. Diz ele a determinada altura na sua entrevista à LER, de Janeiro de 2010: “A actual democracia não tem nada a ver com a República. Os Republicanos não se reconheceriam neste regime democrático. [...] Estamos a comemorar um regime que foi odioso para uma grande parte da população portuguesa: que ofendeu, magoou, espezinhou. E vamos comemorar isso como se ele fosse um antecessor da nossa Republica. Aquilo que nós vamos ter é uma comemoração de um dos regimes mais intolerantes e mais perseguidores na História de Portugal.»
Sem querer adjectivar estas afirmações, que só vêm corroborar a opinião que eu tenho do autor, diria que estamos mais uma vez no domínio da pura provocação política. Como sabe Rui Ramos que o regímen foi odioso para uma grande parte da população portuguesa? Mas o principal é esta ideia de que a República foi um dos regimes mais intolerantes e mais perseguidores. É por isso, que na sua História recorre aos números para confrontar a República com a Ditadura e é aqui que se dá a grande mistificação. Pois nós sabemos que a República prendia e reprimia os sindicalistas, simplesmente era sol de pouca dura, vinha um golpe de estado ou um novo governo e era aprovada uma amnistia aos presos e deportados do anterior governo. Nunca a República suprimiu duradouramente a União Operária Sindical, que em 1919 deu origem à Confederação Geral do Trabalho (CGT), de tendência sindicalista-revolucionária, nem o seu principal órgão informação A Batalha. Ora o fascismo fez tudo isso, e de vez, reprimindo e enquadrando politicamente os sindicatos e eliminando os jornais operários. Ou seja, à bagunça política da I República sucedeu a ordem fascista, que progressivamente foi enquadrando tudo o que podia mexer e fazer-lhe frente.

Mas não é só sobre o repisar da questão do post anterior que me quero pronunciar. Li numa pesquisa Google que o jornal i tinha publicado um pequeno extracto do livro de Rui Ramos na parte referente aos anos que antecedem e precedem as eleições de 1958 em que concorreu Delgado, em nome da Oposição, e Américo Tomás, pela Ditadura.
A descrição transcrita no i começa com as diferentes correntes situacionistas que estavam em jogo nas vésperas daquelas eleições: a do tenente-coronel Santos Costa, representando a facção reaccionária e conservadora do exército, e a do professor Marcelo Caetano, desejoso de mobilizar as massas para um programa social de cariz fascista-corporativista, que pelas contingências da paralisia do regime se iria converter anos mais tarde em chefe de uma fugaz tentativa liberalizante.
Depois fala de todos aqueles que despeitados pela não recandidatura de Craveiro Lopes, se afastaram do regime ou pensaram destituir Salazar com um golpe de estado. Refere-se neste caso a Humberto Delgado que se iria apresentar às eleições de 1958, contra o candidato da “situação” e depois acrescenta: “As oposições, depois de o denunciarem como um "general fascista", não tiveram remédio senão segui-lo.” Generaliza, com a utilização do plural, e esquece que houve uma corrente da oposição encabeçada por um dos seus homens mais sábios, António Sérgio, mas não só, que desde o princípio o apoiaram e o incentivaram a concorrer. Quando Humberto Delgado dá a sua conferência no café Chave de Ouro em que diz “obviamente, demito-o”, e referia-se a Salazar, já estava ladeado por essa corrente da oposição. Outras correntes, incluindo o Partido Comunista, tiveram de facto muitas dúvidas em apoiar um general que ainda há bem pouco tempo era um dos filhos dilectos do regime fascista. Verdade se diga, que depois das portentosas manifestações do Porto e de Lisboa a favor do General, o PCP e alguns dos seus amigos fazem com que o seu candidato, Arlindo Vicente, estabeleça um acordo com Delgado, que ficou conhecido como o acordo de Almada, desistindo aquele a favor do General. Ora nada disto é escrito, passando Rui Ramos sobre este assunto como cão por vinha vindimada.
Sobre estas eleições, que abalaram profundamente o regime, resume-as Rui Ramos às declarações da embaixada espanhola – logo a quem ele as foi buscar – “que a crise tinha sido suscitada, "não pela força da oposição em si mesma, mas pelo cansaço, deserções e deslealdades" dentro do regime.” E depois resume os acontecimentos de toda a actividade oposicionista da época às deserções do Bispo do Porto, que teve de facto importância política, e a uma misteriosa, porque ignorada, ruptura na Causa Monárquica, em que “a "gente mais nova" … conseguiu envolver o duque de Bragança, D. Duarte, num movimento a favor de uma monarquia constitucional.” Gloriosa Causa que estava na vanguarda da luta contra o fascismo. E é esta a história com conceitos novos que nos querem vender.

Como já alguém escreveu esta é a História de “Muita fidalgaria e pouca arraia-míuda…”.

Se para isso tiver força e não vos maçar muito gostaria de fazer uma pequena apreciação de como esta História, que eu visse, não suscitou mais nenhuma crítica do que aquela que indiquei no parágrafo anterior. A esquerda portuguesa já não tem coragem de derrubar um Rui Ramos.
Fotografia da multidão saudando o General Humberto Delgado na Praça Carlos Alberto, no Porto, no dia 14 de Maio de 1958.

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